As gramáticas da diferença que o racismo nomeou

Em 1944, Hannah Arendt argumentou que apenas duas ideologias se mostravam então capazes de sobreviver ao confronto com a "disputa vincadamente competitiva da persuasão" das massas.

A primeira propunha uma interpretação da "história como uma luta económica entre classes". A segunda postulava uma interpretação da «história como uma luta natural de raças». Na sua opinião, a ideologia do racismo constituía uma justificação instrumental produzida pela competição interimperial e pelas respectivas "estratégias nacionais", sendo necessário distingui-la do pensamento racial (race-thinking) com origem em investigações associadas ao dito "racismo científico" ou à raciologia. O racismo seria, assim, um produto do imperialismo, não do pensamento racial. Seria uma arma política, não uma doutrina teórica. Ganharia vitalidade e dimensão fora das torres de marfim académicas, sendo resistente às verificações e correcções que nas últimas eram esgrimidas. O seu argumentário — plástico e em permanente negociação e contestação — sobreviveria a uma "biblioteca de refutações". Ademais, os significativos poderes encantatórios de ambas as ideologias, capazes de apelar e mobilizar em larga escala e com igual fervor, haviam sido apropriados pelos estados. As ideologias tinham sido tornadas doutrinas nacionais oficiais. Esta imunidade dogmática a «factos passados e presentes» era, e é, uma característica inultrapassável do pensamento e da performatividade prosélita do(s) racismo(s) e, assim sendo, constitui, ou deve constituir, um dado central na interrogação das suas manifestações históricas. [1]

Um outro factor contribuiu, e contribui, para esta manifesta imunidade do racismo ao pensamento crítico rigoroso. A poderosa disseminação social do racismo, cujos princípios são facilmente refutáveis mas parecem ser dificilmente extinguíveis, sempre esteve associada a acções e reflexões de natureza virulenta, violenta e emotiva, invocando e mobilizando ódios e receios vários. O racismo foi, e continua a ser, um elemento central nas variadas políticas do medo e do terror. As características do racismo supra referidas, que marcam indelevelmente os processos de racialização in acto e in situ, dificultam sobremaneira a sua confrontação e desfundamentação. [2] Tornam ainda difícil aceitar o argumento de que o racismo resulta, apenas ou essencialmente, de uma mera instrumentalização racional por parte de certos actores históricos (como pode ser, em certo sentido, depreendido da leitura de Arendt). O racismo foi certamente uma gramática organizadora e legitimadora de uma «ordem imperial» moderna, contribuindo para uma intensa politização da cultura a uma escala global, reorganizando e transformando as formas de imaginar e definir as alteridades relacionais que lhe antecederam. A diferenciação cultural passou a acarretar, de modo conjugado, a marcação literal e física da diferença (a agregação de caracterizações culturais, morais e cognitivas a particularidades fenotípicas), a racionalização das hierarquias do privilégio e do lucro, a consolidação de regimes de trabalho úteis ao desenvolvimento do capitalismo e ainda o suporte «psicológico» da pluralidade de mecanismos sociais, políticos e culturais, lato sensu, que possibilitaram, não sem resistências várias, a exploração e a dominação coloniais. [3]

A produção histórica de distinções raciais e a sua activação política, legal, moral, social e económica — assentes em diversos mecanismos e processos que não são obviamente exclusivos de contextos imperiais e coloniais, sendo igualmente predominantes em contextos pós-coloniais — produziram diferentes «regimes de raça», como lhes chamou recentemente Patrick Wolfe. [4] Estiveram igualmente associadas a diferentes modalidades de administração político-social e de exploração económica de grupos étnicos específicos. As (geo)políticas do trabalho e da propriedade, com expressões locais mas seguramente articuladas numa escala global, foram exemplos claros desta relação. [5] Estes regimes são «traços da história», desenhados por modalidades diversas de dominação e exploração, que enraizaram formas duradouras de identificação, classificação e diferenciação racial, particularmente visíveis em contextos imperiais e coloniais. Nestes, relações coloniais particulares suscitaram, e foram suscitadas, por discursos e práticas de distinção racial específicos. Os regimes e as políticas da diferença foram causa e resultado de configurações coloniais precisas e dinâmicas, condicionando os recursos e as estratégias de resistência à sua efectivação e condicionando, também, os legados, as memórias e pós-memórias da sua história plural.

Neste sentido (com as reservas que os argumentos de atribuição causal evidente deste género exigem), a «raça é o colonialismo a falar» de modos diversos, que, por sua vez, correspondem à multiplicidade de relações desiguais que pautaram as situações coloniais. O mesmo sucede com o racismo. A centralidade do pensamento racial e do racismo, assim como da racialização, na «álgebra da desigualdade», tão poderosa no seu alcance e nos seus efeitos duradouros em contextos coloniais, foi notória e dificilmente pode ser questionada. As lógicas discriminatórias de «inclusão versus exclusão, exploração versus privilégio, pureza versus perigo» — esta última, uma fértil alusão ao perspicaz entendimento de Mary Douglas — foram institucionalizadas, incorporadas (nos vários sentidos do termo) e espacializadas com reverberações que ainda hoje perduram. Nas linguagens, nos símbolos, na iconografia, nos corpos e nas paisagens, com maior incidência nas urbanas. Os esforços de promoção e de conservação de uma relação umbilical entre reprodução social e reprodução biológica foram poderosos, eficazes e duradouros, garantindo de permeio a resiliência histórica da reprodução local e global de hierarquias e desigualdades sociais profundas. [6]

Os ecos e os efeitos das desiguais relações imperiais e coloniais persistem com clareza, de modo mais ou menos visível, sem que isso implique necessariamente a aceitação acrítica de um raciocínio teleológico ou determinista na interpretação histórica. O dinamismo das reconfigurações históricas das articulações entre regimes da diferença e relações sociais, ou a diversidade histórica (e variação geográfica) de gramáticas da diferença racializadas, não autorizam simplismos e simplificações. A "versatilidade estratégica" dos usos da racialização — entre a possibilidade e utilidade do indivíduo reformável e a demonstração da sua incorrigibilidade cultural e social que tanto legitimou regimes de excepção como alimentou temores da mudança social — foi sempre notável, a sua capacidade de adaptação a contextos históricos e dinâmicas político-sociais distintos inegável. [7] Porém, enquanto prolífica e heterogénea gramática do quotidiano, de origens nem sempre claras e suscitando poderosos efeitos, visíveis ou não, o racismo não foi, e não é, um produto originário de uma academia ao serviço das geopolíticas imperiais, como não foi, nem é, apenas um produto da necessidade de legitimação racional de actores históricos. Nem no passado, nem no presente, ainda que muitos sectores da academia que competiram pelo reconhecimento da sua própria utilidade na imaginação política imperial tenham colaborado, e alguns continuem a colaborar, tanto na naturalização do preconceito como no obscurecimento da sua relevância histórica e contemporânea. A racialização do preconceito precedeu os preceitos e protocolos de diferenciação, classificação e discriminação formulados pelas ciências naturais e sociais de oitocentos em diante, como de modo convincente e sustentado foi proposto por Francisco Bethencourt no seu seminal livro Racismos. Estas contribuíram para um momento importante de naturalização, institucionalização e disseminação de discursos e práticas de discriminação — em manifesta interdependência com os projectos de expansionismo imperial de oitocentos —, mas a conjugação entre preconceitos étnicos e acção discriminatória remete para genealogias mais antigas e configurações diversas, surgindo com frequência associada a contextos ou conjunturas de mobilização e conflito políticos específicos, amiúde centrados em disputas de natureza económica e geopolíticas. A competição pela «tomada de posse do mundo» e pela sua imaginação cartográfica e iconográfica, o comércio de escravos e a Inquisição são três exemplos magnos de processos e genealogias históricas que contribuíram de modo eficaz para dar conteúdo ao que o racismo deu nome. [8]

Do mesmo modo que remete para antigas e distintas configurações históricas, o racismo não é um problema marginal nas sociedades contemporâneas. O racismo não é, de modo algum, um assunto arrumado. Este conjunto de reflexões, partindo de um número limitado de investigações sobre as manifestações históricas do fenómeno racista, foi suscitado pela leitura das excelentes reportagens feitas por Joana Gorjão Henriques, Racismo em Português, publicadas na Revista 2 do jornal Público, que, com o indispensável apoio da Fundação Francisco Manuel dos Santos, mais uma vez contribui para debates prementes sobre a sociedade portuguesa e sobre sociedades com as quais esta manteve relações estreitas, por via de um jornalismo de investigação de qualidade. Assente em mais de uma centena de entrevistas e numa sóbria mas rigorosa investigação histórica, esta colecção de cinco textos sobre cinco geografias coloniais e pós-coloniais revela, a cada passo, muitos dos aspectos abordados acima. Trata-se, assim, de um trabalho que dialoga, e muito, com o que de mais interessante tem sido feito sobre a produção histórica das álgebras da desigualdade e sobre a centralidade que os racismos têm assumido nesse processo. De facto, como refere Katila Pinto de Andrade sobre Angola, a «pobreza tem cor». [9] A interdependência e o reforço mútuo de dinâmicas de diferenciação e exclusão política, económica e sociocultural é impressionante. A subalternidade é um grilhão difícil de desarmar. Tem múltiplos pesos, cuja utilidade política, social e económica foi explorada em condições muito diversas. E não desaparece por decreto.

Racismo em Português contribui para uma compreensão da diversidade histórica, geográfica e social das manifestações de «versatilidade estratégica» dos processos de racialização em contexto colonial — umas visíveis (as cordas que se saltavam de Bafatá para Bissau ou o «traço B» nos Bilhetes de Identidade) e outras mais dificilmente descortináveis (os silêncios e os não-ditos apontados por André Corsino Tolentino). Estas manifestações estendem-se também a dinâmicas de diferenciação e discriminação entre populações governadas, apenas parcialmente explicadas pelas estratégias de «dividir para reinar» e de cooptação instrumental do Estado-império. E fá-lo sem deixar de dar voz à heterogeneidade de usos e das reacções às inúmeras linhas divisórias; às zonas cinzentas; às ambivalências e contradições dos discursos e das práticas de distinção e de identidade social (dos mundos do talvez de Pepetela ao contemporâneo afropolitanismo, apontado por Joana Gorjão Henriques); às "relações improváveis"; às resistências múltiplas; e às operações de mistificação e desmistificação ideológica. Neste mosaico de interrogações e confidências, testemunhos e memórias, celebrações e lutos — exemplarmente recolhidos e articulados pela autora deste itinerário de auscultação dos passados no presente e dos presentes do passado —, percebemos melhor a plasticidade dos racismos e o alcance da racialização ideológica e institucional.

O livro ilustra ainda, com perspicácia, a persistência histórica de uma multiplicidade de gramáticas da diferença racial, que se encontram claramente associadas a políticas da memória e do esquecimento, como nota César Schofield Cardoso. As reverberações e os usos contemporâneos das "álgebras da desigualdade" (e dos processos de racialização conexos), bem como a invocação selectiva dos contextos socio-históricos específicos da sua produção e institucionalização, são diversos. Essas gramáticas e álgebras estão inscritas espacialmente: na estatuária, nas ruínas do império ou nos espaços e monumentos urbanos e rurais aos quais foram dados novos usos e sentidos. [10] Por exemplo, as roças de São Tomé podem ser vistas como «uma espécie de metáfora do colonialismo português», como sugere Inocência Mata. As materialidades da diferenciação, da discriminação e da desigualdade, bem como as marcas físicas da dominação e da opressão, resistem e perduram, oferecendo possibilidades perpetuadas de apropriação e instrumentalização. Por outro lado, o jogo competitivo e conflitual das identidades sociais e culturais nas sociedades guineense, angolana, são-tomense, cabo-verdiana e moçambicana é fortemente marcado pelos efeitos sísmicos das políticas da diferença imperiais e coloniais (e respectiva instrumentalização), sendo sempre mais notórias em contextos de crise social, política e económica. Na verdade, estes períodos são sempre propícios à emergência de reavaliações, e de usos instrumentais, do passado. As lutas por identidades várias, as reinvenções de tradições e as imaginações da modernidade (ou a sua desvalorização em nome de uma «autenticidade» negada pelas culturas do colonizador) são processos claramente condicionados por ecos do passado. Isto sucede mesmo quando se procura «desracializar o conceito de moçambicanidade», como Joana Gorjão Henriques sublinha em relação ao testemunho de Tassiana Tomé. Sucede ainda quando se procura desvalorizar ou omitir os «traços da história», em nome de novos começos ou de amanhãs de unidade e harmonia, ou quando se promove uma retórica de inexistência de racismos nas sociedades pós-coloniais, semelhante à veiculada pela própria cultura colonial.

As gramáticas da diferença que o racismo nomeou têm múltiplas origens, usos e repercussões. Subsistem a bibliotecas de refutações que lhes retiram sentido e justificação. Resistem à razão legal que as procura domar. Enganam a razão política que as procura desvalorizar ou esconder. Trabalhos como este ajudam-nos a perceber como e porquê. Ajudam-nos, ainda, a perceber por que não devemos desistir de as denunciar, refutar e combater.

Esta série foi realizada em parceria com:

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