A sardinha do Algarve é fresquinha, mas o preço chega “salgado” a Lisboa

De um dia para o outro, bastou um cheirinho a Santo António para fazer disparar o valor do pescado na lota de Portimão para mais do dobro. No leilão, apesar das modernas tecnologias, são ainda os “olheiros” a arma secreta dos comerciantes.

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Em Portimão, o valor do pescado tanto pode cair para os 50 cêntimos como ultrapassar os cinco euros por quilo João Henriques

A sardinha vendida em Lisboa tanto pode ter sido pescada no Algarve, Matosinhos, Setúbal ou Andaluzia. O negócio não tem fronteiras: quem mais paga é quem fica com sardinha mais gorda. Os empresários servem-se dos telemóveis para acompanhar o evoluir dos mercados, em tempo real, mas os “olheiros” nas lotas continuam a ser a arma secreta dos comerciantes. O valor do pescado tanto pode cair para os 50 cêntimos, em alturas de menor procura, como ultrapassar os cinco euros por quilo, como já está a acontecer.  

Na lota de Portimão, na passada quarta-feira, o preço médio da sardinha fixou-se nos 2,5 euros por quilo, para um volume de capturas de 17 toneladas. No dia seguinte, com o cheirinho a festas de Santo António, em Lisboa, o preço disparou para mais do dobro. A pescaria transaccionada rondou as 40 toneladas. Com o telefone numa mão e o comando do leilão electrónico na outra, João Duarte dá ordens de compra para várias lotas no país, a partir de Portimão, onde possui a base logística.

Para qualquer um saber o que se passa no mar, existe um sistema de comunicação instalado nas embarcações de maior porte que permite, através de uma aplicação de acesso livre, vigiar à distância a faina. O que se passa no porto de Portimão – um dos grandes centros de produção de sardinha do país – ilustra, em certa medida, o que acontece nas restantes zonas piscatórias. As novas tecnologias mudaram a geografia do pescado, aproximando interesses nem sempre convergentes.   

Seis compradores aproximam-se das instalações da Docapesca, no porto de Portimão. A abertura do leilão está marcada para as 5h. No interior do armazém, estão para venda alguns milhares de quilos de sardinhas, capturados por quatro barcos, às primeiras horas da noite. Os compradores olham uns para os outros como se fossem dar início a uma partida de póquer. Os telemóveis, sempre presentes, servem para observar as traineiras que continuam na faina e que só haveriam de chegar três horas mais tarde.

O jogo da oferta e da procura

Não há troca de informação entre os presentes - apenas se assiste a um cruzar de olhares. Cada qual faz à sua maneira a leitura das expressões ou gestos sobre o “jogo” do adversário. “Peixe da noite”, dizem, referindo-se ao que está à venda, dando a entender que melhor será aguardar pelo pescado, mais fresquinho, que estará para chegar mais tarde.

Está quase na hora de começar o “jogo” da oferta e da procura. Para desanuviar o ambiente, um comprador fala do vento levante que lhe tem vindo a arrastar os sonhos, prejudicando o sono. “O levante costuma fazer mal é aos cães”, comenta-se. João Duarte, sócio-gerente da Portipesca – uma das grandes empresas de comercialização de pescado da região – está atento à contagem decrescente dos preços, com o olhar preso no monitor suspenso no tecto do armazém. 

Para não correr o risco de não carregar no botão no momento certo, conta ainda com o apoio de um colaborador, também com um dispositivo idêntico. “Ainda me recordo de quando tinha de ir a correr para a cabine telefonar”, diz, passado uma hora, enquanto mostrava os seus novos armazéns – uma moderna rede de frio onde investiu recentemente 1,5 milhões de euros. A sua área de negócio abrange todo país, estendendo-se a Espanha e Marrocos. “Não há falta de sardinha este ano e é de boa qualidade”, garante

O primeiro peixe da “noite”, capturado pela embarcação Flor da Beira, de Olhão, é vendido a 1,5 euros por quilo. Mas, quando chegam as últimas dornas de sardinhas (3750 quilos) do barco Mario Luís, o preço salta para os 2,20 euros por quilo. O comando foi accionado por um jovem que, aparentemente, esteve quase toda a primeira parte do leilão a fazer jogos no iphone. Só entrou em acção quando recebeu ordens do patrão, da firma Isidoro Martins, para avançar. João Duarte, questionado pelo PÚBLICO sobre a razão de ter perdido o lance, desvaloriza: “Não era o meu preço”. Minutos depois liga para um seu colaborador, na lota de Quarteira: “Não deixes fugir isso”, ordena, depois de uma troca de informações sobre os preços.  

O dirigente da Cooperativa de Armadores de Pesca do Barlavento, Jorge Vairinhos, comenta: “Isto é o que se vê”. Então, o que é que se esconde? “Tire as suas ilações”, responde, enigmático, lembrando que há uma “ferramenta” na legislação comunitária que permite a negociação directa entre comprador e armador, servindo a lota apenas para fazer o registo.

Mais tarde, na segunda parte do leilão, haveria de tornar mais clara a declaração, comparando o pensamento a um barco que chega carregado de sardinha e não vai a leilão. Ao largo da costa, a cerca de meia de hora de distância de barra, ainda há 13 traineiras a navegar. Os comerciantes, através dos iphone, observam as suas movimentações. Procuram saber se estarão a lançar as redes ou apenas a navegar.

À espera do extra fresco

O leilão está parado, aguardar-se pela sardinha acabada de pescar. “Esperam pelo peixe extra fresco”, diz o funcionário da Docapesca, Carlos Reis, lembrando que este é o tipo de pescado mais valorizado, pela qualidade que apresenta, para ser vendido noutras regiões do país. Nos armazéns de João Duarte procede-se à lavagem e choque térmico do pescado, para seguir para as lojas das cadeias de supermercados Continente, Pingo Doce e Euromarché, em caixas herméticas.

Quantos colaboradores tem? “Nem eu sei”, responde, deixando subentender que a sua rede de contactos é bastante vasta. Além das áreas de interesse na comercialização e distribuição de pescado, a empresa que dirige possui ainda três embarcações. O volume de negócios oscila entre os oito e os nove milhões por ano.

Passadas duas horas, dá-se a chegada dos barcos que foram para o mar, de madrugada. Vairinhos chama a atenção: “Está a ver, aqueles homens vão para casa e não levam nada. O que vão comer?” A traineira encosta, vazia, ao cais. “Os barcos não são telecomandados, precisam de pescadores”, enfatiza.

Sobre o preço da sardinha, critica a falta de regulação. “Na praça, habituaram-se a pôr o preço a cinco euros por quilo, independentemente do valor da compra na lota”. Pouco depois, perto das 8h30, atraca um barco com as sardinhas “vivinhas” da costa. Henrique Luz faz a maior oferta do dia: três euros por quilo. "O que se sabia de madrugada, não é o que se sabe agora”, diz, explicando que o valor que atribuiu ao pescado foi baseado nas informações que, entretanto, lhe chegaram sobre o que estava a decorrer nas outras lotas.

Aproxima-se uma traineira da Portipesca, com 1470 quilos de sardinha a bordo, a 1,78 euros por quilo. A embarcação possui um contrato que lhe garante, pelo valor mínimo de um euro, comprador para todas as sardinhas que pescar. “Percebe por que digo que as coisas não vão bem?”, pergunta Jorge Vairinhos, defendendo que o consumidor só teria a ganhar com a livre concorrência dos mercados.               

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