A "legalidade democrática" da "benevolência"

Não foi a "pressão radical" a marcar a natureza e o desfecho do processo de depuração de responsabilidades dos responsáveis pela ditadura, mas sim o 25 de Novembro.

Um estudo recente de Filipa Raimundo, Sofia Serra da Silva e Joana Morais veio reforçar o que já sabíamos há muito: que uma grande maioria dos portugueses (65%) entende que “não foi feita justiça” relativamente aos crimes da polícia política salazarista, a PIDE/DGS. As autoras sublinham o que é ainda menos surpreendente: que "cerca de 95% dos que foram vítimas de repressão e que sofreram diretamente as consequências da perseguição político-ideológica consideram claramente insuficientes as medidas adotadas para punir os responsáveis pela repressão”, e que 72% destes considera que as vítimas “ainda não obtiveram o reconhecimento que merecem” (PÚBLICO, 28.5.2016).

Há dias, Irene Pimentel aproveitou esta notícia para reapresentar (PÚBLICO, 8.6.2016) uma síntese do estudo que realizou há anos sobre o que chama o "processo de Justiça de transição" a que se submeteu os agentes da PIDE: 6% foram absolvidos ou condenados apenas à perda de direitos políticos, 64,1% a penas até um mês de prisão, 11,85% até um ano, 13,5% de 13 meses a 2 anos, o que, por "aproximar-se do tempo de prisão preventiva já sofrida", lhes permitiu então "sair em liberdade definitiva". Só 3,2% foram condenados a penas acima dos dois anos de prisão, que quase nenhum cumpriu por ter sido julgado à revelia. Diz Pimentel que "60% dos condenados beneficiaram de perdões e de outras atenuantes que permitiram a redução das penas e a sua saída em liberdade definitiva". Entre as atenuantes contaram sobretudo as comissões realizadas em África durante a guerra colonial – e falta acrescentar que foi nesse contexto que os agentes da PIDE se comportaram com uma brutalidade sanguinária sem precedentes. "O 'peixe graúdo' escapou à detenção". Entre os ministros do Interior que tutelavam o aparelho de repressão, "Alfredo Santos Júnior foi condenado, em 1979, a dez meses de prisão, já expiados com a prisão preventiva, e César Moreira Baptista e Arnaldo Schultz foram absolvidos". Este, recorde-se, foi o comandante em chefe das tropas na Guiné (1964-68) que, em circular oficial, recordou às tropas que, quanto ao tratamento a dar aos guerrilheiros do PAIGC, "o terrorista não é um soldado (...), está mais próximo do assassino que do militar. (...) Segundo a ética dos Exércitos, um combatente aprisionado sem uniforme deve ser fuzilado" (cit. in J.P. Guerra, Memória das guerras coloniais, 1994).

É, portanto, natural que a investigadora sintetize o "processo de justiça política" desse período como "incompleto e marcado por sentenças benévolas, atenuantes e perdões", mas, ao referir que tal "[levou] a maioria dos portugueses a pensar que teria havido impunidade", surge a dúvida: tem ou não razão aquela maioria de portugueses que entende que os pides permaneceram impunes? Tem ou não razão Fernando Rosas, por exemplo, que, em livro em que Irene Pimentel colaborou, sintetiza o julgamento daqueles como "farsa insultuosa de desculpabilização política, tendo por complacente julgador o tribunal militar" (Vítimas de Salazar, 2007)? É ou não importante saber como se explica que os mandantes e os torcionários de uma ditadura caída pela via revolucionária – ao contrário da generalidade das outras que, nos últimos 25 anos do séc. XX, caíram por via de uma transição sustentada por um pacto entre velhas e novas elites políticas – tenham sido tratados com essa "extrema benevolência", como a classifica a própria Pimentel? Foi ou não esta "benevolência" uma opção política deliberada?

Discuti esta questão num livro (Ditaduras e Revolução. Democracia e Políticas da Memória, 2014), que coordenei com Filipe Piedade e Luciana Soutelo, onde tentei demonstrar a coerência entre uma narrativa da Revolução feita de radicalização a que só o 25 de Novembro poria cobro, trazendo uma salvífica moderação democrática, e a benevolência para com os responsáveis da repressão que construiu as bases do discurso relativizador da ditadura.

Em artigo publicado no livro Democracia e Ditadura. Memória e Justiça Política (2013), Pimentel sublinhou que tinha sido "muito radicalizada" a "pressão" exercida no período revolucionário "no sentido de se criminalizar a PIDE/DGS", "sobretudo da parte das oposições ao antigo regime", numa "tentativa breve de ajustar contas". Contudo, é evidente que não foi a "pressão radical" a marcar a natureza e o desfecho do processo de depuração de responsabilidades dos responsáveis pela ditadura, mas sim o "25 de Novembro de 1975 (...) [que] possibilitou a libertação provisória dos elementos da ex-PIDE/DGS enquanto aguardavam julgamento e introduzindo atenuantes na incriminação", fazendo com que "os anos entre 1976 e 1978 [fossem] assim os de 'todas as libertações'". "A partir de 1976, o processo de justiça político (…) foi limitado quer pelos governantes" – ou seja, os governos Soares, os presidenciais e os da AD –, "quer pela parte moderada dos militares que na época faziam parte do Conselho da Revolução", isto é, a ampla coligação que, do Grupo dos 9 até à direita militar, se articulou em torno de Eanes até este se desembaraçar, em 1982, dos Nove. É intrigante, portanto, que Filipa Raimundo (artigo em A Sombra das Ditaduras, 2013) sintetize este processo como sendo o da "vitória das forças moderadas e a progressiva institucionalização do Estado de Direito" a partir do 25 de Novembro, com "o abandono da legalidade revolucionária e a consolidação da legalidade democrática", porque foi esta legalidade que deixou praticamente incólumes os agentes e os torturadores da PIDE/DGS. Vítor Alves ter-lhe-á dito em 2007 que "julgar pides, ministros, presidente do conselho, podia conduzir a um estado revolucionário com tribunais populares e justiça sumária. Seríamos automaticamente invadidos pela NATO e acabava-se num instante o 25 de abril". Muito mais do que constituir uma fonte primária dos acontecimentos, esta é a prova dessa especial conceção de legalidade democrática que partilhavam muitos dos chamados moderados.

Filipa Raimundo chamou-lhes "medidas de 'reconciliação'". Benevolência como forma de reconciliação? José Augusto Rocha, advogado de vários presos políticos nos tribunais plenários da ditadura, explicou-o bem em 1994, depois de o pide Óscar Cardoso ser convidado pela SIC para falar do 25 de Abril: "A PIDE não foi condenada, não porque havia promiscuidade entre ela e as forças armadas, (...) e porque a generalidade dos torturados não foi depor em tribunal, mas porque o aparelho de Estado fascista incluía as forças armadas e a polícia e a especial natureza do Estado na transição do fascismo para a democracia teve ainda forças e preservou aquele aparelho do seu próprio julgamento. (...) Uns e outros são e se confundem com o aparelho de Estado que integram" (PÚBLICO, 1.5.1994).

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