João quis fazer mais do que distribuir sopas e abriu uma casa para sem-abrigo

Já foram sem-abrigo. Bateram no fundo: consumo e tráfico de droga, álcool, roubos e prisão. Passaram fome e frio, dormiram numa “cama” de cartão. Agora têm um tecto graças a um empresário que os resgatou da rua e instalou numa casa de abrigo para recomeçarem do zero.

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Daniel, Ermelinda e Ricardo têm agora um tecto, comida à mesa e perspectivas de um futuro emprego Fernando Veludo/NFactos
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Daniel, Ermelinda e Ricardo têm agora um tecto, comida à mesa e perspectivas de um futuro emprego Fernando Veludo/NFactos
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Os sem-abrigo têm agora um tecto, comida à mesa e perspectivas de um futuro emprego Fernando Veludo/NFactos

São histórias das suas vidas como sem-abrigo que Daniel Marques, 34 anos, Ermelinda Lopes, 52, e Ricardo Carvalho, 43, partilham à mesa da casa onde o empresário João Leite os acolheu depois de anos a dormirem ao relento numa cama feita de cartão. “Foi um anjo que caiu do céu que nos resgatou da rua”, diz Ermelinda. Mas João Leite não gosta de puxar dos galões, porque é “por amor à causa que os aloja, forma e ajuda na procura de trabalho”. Preocupa-o os 12 que já tem em lista de espera.

Este empresário do ramo do imobiliário não conseguiu “ficar indiferente” depois de, em 2015, contactar de perto com estas vidas nas vezes em que distribuiu comida aos sem-abrigo, numa carrinha na Rua de Júlio Dinis, no Porto. Começou um bichinho a remoer, o querer fazer mais do que “distribuir sopa, porque um sem-abrigo é uma pessoa, tem uma história; mas é marginalizado.”

Numa dessas vezes, estava João Leite junto à carrinha quando conheceu Joaquim, que – mal sabiam os dois – viria a ser o primeiro beneficiário da associação Palavras Inquietas. Projecto que, ainda nem lhe passava pela cabeça, iria criar em Novembro desse ano. “Naquele dia, quando eu distribuía comida, ele ainda me quis bater; estava alcoolizado”, recorda, com algum pesar, por Joaquim não ter aproveitado a oportunidade que, meses mais tarde, lhe deu para recomeçar nova vida. Perdeu-se no mundo do álcool e está agora internado numa instituição. Só depois de recuperado pode regressar à casa de abrigo, no Porto, onde, desde o início deste ano, moram Daniel Marques, a companheira, Ermelinda Lopes, e Ricardo Carvalho.

“Nem imagina as noites que passei atrás dele na rua”, conta João, que tentou de tudo para o ajudar, mas o alcoolismo venceu a batalha. Pelo menos por enquanto. À sua espera, Joaquim tem o quarto, tal como o deixou, porque ainda há esperança que retome o trilho da nova vida que o empresário lhe prometeu. “Tinha-lhe prometido que o iria resgatar da rua, porque tinha mesmo de fazer mais, como ele me pediu, quando o encontrei, um dia mais tarde, a arrumar carros.”

As palavras de Joaquim desassossegaram João: “Disse que dar sopa não servia de nada, porque a raiz do problema continuava. Devíamos tirá-los da rua e apoiá-los.” Aquelas palavras ficaram a remoer-lhe na cabeça. E tanto que criou a associação Palavras Inquietas. Cumpriu, assim, a promessa feita a Joaquim, que, por sua vez, tem agora de cumprir a sua parte para poder regressar, como todos os restantes beneficiários do projecto.

Estes têm uma espécie de contrato verbal com João Leite: mudarem a sua vida e integrarem-se na sociedade. Em troca, a associação dá-lhes casa, formação e ajuda-os a procurar emprego. “Se falharem, voltam à rua”, explica João, que quer “uma associação de referência, a nível nacional, na retirada dos sem-abrigo da rua, e no combate à pobreza e exclusão social”. Conta, para isso, com a ajuda financeira de mecenas, ainda que não seja suficiente para todas as despesas que tem de suportar e tudo o que gostaria de fazer.

Hoje já são 18 associados. Mas é uma associação muito familiar: a irmã de João, Joana Azevedo, é vice-presidente; a mãe, Manuela Leite, é vice-presidente da assembleia geral; e o pai, António Leite, é tesoureiro. Depois desafiou a técnica superior de educação social Catarina Torres, que faz a sinalização e o acolhimento dos sem-abrigo, além de também tratar das questões mais burocráticas, como pedir o rendimento social de reinserção para os beneficiários. Juntou-se-lhes, recentemente, a psicóloga Miriam Medina para dar resposta aos traumas herdados nas ruas.
Mas João Leite tem ainda a meta ambiciosa de, em breve, abrir uma nova casa abrigo e, nos próximos três anos, integrar 12 sem-tecto no mercado laboral. Não lhe faltam pedidos. Quase todos os dias lhe batem à porta a pedir uma nova oportunidade de vida. Depois é o passa-palavra entre eles, como foi o caso de Ricardo, que foi encaminhado pelo Daniel. “Não escolhi viver na rua, mas não tive outro remédio”, desabafa Ricardo. Foi empurrado para esta condição pelo desemprego e consequente despejo da casa onde morava. “Sinto que já faço parte deste novo lar; só falta mesmo arranjar emprego”, diz.


Caminho sem regresso

Quando João Leite lhes perguntou se queriam largar aquela vida, Ermelinda, Daniel e Ricardo nem pestanejaram. Para trás ficaram os anos a dormir ao relento, numa cama improvisada com cartão. “E, por vezes, com mais quatro paus colocados ao alto, com um plástico por cima para improvisar uma tenda por causa do frio e da chuva”, lembra Ricardo. Quantas vezes, à noite, “tinha aquilo tudo destruído pelos outros”, conta.

Agora é tempo de esperança. “Nem pensar voltar àquela vida de sem-abrigo”, diz Ermelinda, cansada que está dos olhares “discriminatórios”, dos mais de dez anos de miséria, depois de lhe “ter dado uma coisinha má na cabeça, quando morava em Ovar, e ter ido parar ao Porto”. Chegou só com um bilhete de ida e não conseguiu sair da rua. Nesta jornada, conheceu o companheiro, Daniel, junto a uma carrinha de distribuição de comida. “Nunca mais nos largámos, mesmo quando ele foi preso por tráfico de droga e roubo de carros e casas”, recorda Ermelinda, enquanto mostra, com orgulho, a cozinha “a brilhar” daquela que agora é a sua casa.

João Leite lá lhe diz para não se esquecer da consulta, no dia seguinte, com a psicóloga da associação. Ela anui com a cabeça, mas não esconde o nervosismo. “Tenho receio de sair à rua.” Não sabe explicar bem porquê. Afinal, viveu lá anos a fio.

O casal já não vivia na rua quando o empresário lhes deu a mão para uma nova vida, mas numa pensão encaminhados por uma assistente social de uma associação. “Era muito mau”, desabafa Ermelinda, porque “não era uma verdadeira casa, e do ambiente nem se fala.” Continuavam na mesma a vaguear pelas ruas durante o dia. Antes disso, pernoitaram, durante mais de dez anos, em casas devolutas e parques, um pouco por toda a cidade. “Deitava uma porta abaixo para dormirmos. Depois, de manhã, vinha a polícia e fugíamos”, recorda Daniel, entre sorrisos.

Não falta comida à mesa

“O João enche-nos o frigorífico de comida. Não nos falta nada. Até televisão por cabo temos”, acrescenta Daniel, passos acelerados para mostrar, orgulhoso, “as condições condignas de habitabilidade que o João proporcionou”.
Aqui não há formalismos. Tratam-se todos por tu, incluindo ao empresário, que faz questão de “os tratar como se fossem da família” desde que lhes deu uma vida nova e a esperança de se integrarem na sociedade, de “não se sentirem discriminados pelas pessoas que os olhavam com desdém”, como desabafa Ermelinda, interrompida pelo bater na porta. Uma vizinha convida-a para tomar café. A expressão do rosto muda logo. Não está nada habituada que a tratem assim tão bem.

Mas a miséria e a vida de rua tornou-os mais fortes e todos têm em comum a desmedida fome de agarrar, com todas as forças, um novo rumo, longe do rótulo de sem-abrigo. E Daniel já o fez. Foi o primeiro a integrar o mercado laboral: “Sou empregado de armazém e até tive formação com uma consultora de moda que me ensinou a falar, a andar direito, a saber estar, a combinar a roupa.”

João Leite faz de tudo para os ajudar. “É muito difícil arranjar emprego para eles”, admite. O passado de contas com a Justiça é um lastro pesado. É o caso de Daniel, que conta que uma coisa levou à outra e que sempre que saía da prisão regressava à condição de sem-abrigo, acabando por cometer mais crimes, e por ser novamente preso. Cumpriu várias penas e andou num entra e sai das cadeias de Custóias, Santa Cruz do Bispo e Caxias. 
“Na prisão, enterrei-me ainda mais do que quando estava em liberdade”, desabafa. O vício piorou: “Há mais droga lá dentro do que cá fora.” “Fui apanhado a traficar na cadeia e fiquei, durante 15 dias, preso na solitária, de onde saímos maluquinhos da cabeça”, conta. Esmeralda esperava-o sempre.

Daniel desvenda mais um pouco da sua vida: “Em pequeno, fugi 34 vezes dos centros educativos. Furtava em supermercados, mas depois era apanhado e regressava.” Num dos centros, em Viseu, já com dez anos, a fuga correu-lhe mal. Andou um ano inteiro a escavar, com os colegas de cela, um buraco na parede. “Apanhei um susto de morte quando um deles morreu alvejado com um tiro na cabeça, durante a fuga.”

Agora, virou a página. Talvez pela primeira vez em 34 anos.

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