Construir o futebol, construir a cidade

Na Cidade do Futebol, o projecto do atelier Risco resolve um sistema complexo de campos de treino e espaços administrativos com uma linguagem serena, rara para os dias que correm e em contraste com a singularidade que se espera dos jogadores de futebol.

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Uma vez que os campos de futebol são grandes e planos, a topografia complica ainda mais os dados do problema Daniel Malhão
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Uma vez que os campos de futebol são grandes e planos, a topografia complica ainda mais os dados do problema Daniel Malhão
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Uma vez que os campos de futebol são grandes e planos, a topografia complica ainda mais os dados do problema Daniel Malhão
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Daniel Malhão

O nome Cidade do Futebol é claramente exagerado. No Alto da Boa Viagem, a dois passos do Estádio Nacional no complexo desportivo do Jamor, o novo edifício agrega a sede da Federação Portuguesa de Futebol, o Centro Logístico e o Centro Técnico de Futebol e um conjunto de campos de treino com as respectivas instalações de apoio, um edifício administrativo e várias de salas de imprensa e comunicação. Não é uma cidade, mas o projecto do atelier Risco responde à complexidade da circunstância com eficiência, demonstrando que a arquitectura é capaz de conciliar mundos aparentemente opostos. Não é uma obra para figurar nos compêndios de história da arquitectura, mas reflecte com fidelidade as contradições do nosso tempo e manipula uma linguagem que nos devolve dúvidas sobre os caminhos de alguma arquitectura contemporânea. Inaugurada a tempo da preparação da deslocação da equipa portuguesa ao campeonato europeu de futebol em França doze anos depois da “febre dos estádios” do Euro 2004, o seu nome obriga a repensar como é que a mais importante estrutura desportiva nacional pode e deve contribuir para a transformação da cidade e qual o papel da arquitectura nessa missão.

Futebol e arquitectura

Ninguém tem dúvidas que o Estádio de Braga, da autoria do arquitecto Eduardo Souto de Moura, é uma das mais marcantes obras da arquitectura portuguesa, capaz de ombrear com o Mosteiro dos Jerónimos ou o Convento de Mafra. São obras que sintetizam a potência de um determinado momento, onde se concentra o esforço e a energia de representação da sociedade. Em Braga, o arquitecto levou ao limite a capacidade de controlar o desenho, o lugar e a tecnologia disponível para construir uma obra única, que marcará a paisagem do futebol mundial e constituirá memória futura, quando toda a sociedade se esquecer do modo como se joga futebol. É um processo equivalente ao do Coliseu de Roma, em que passados milénios a qualidade da arquitectura persiste como memória de um tempo e de uma sociedade. Braga foi um caso excepcional num ano em que o futebol serviu para culpabilizar todos os despesismos do Estado e, ainda hoje, os exemplos cambaleantes de Aveiro, Leiria e Algarve servem como exemplo do que não se deveria ter feito. Os arquitectos não têm dúvida em afirmar que qualidade do Estádio de Braga foi capaz de galvanizar a equipa local ao ponto de ser finalista de competições europeias em 2011 e, este ano, a vencer a Taça de Portugal, no Jamor, a dois passos da Cidade do Futebol.

Um outro exemplo desta série de construções para o Euro 2004 foi o Estádio do Dragão, no Porto, projecto do arquitecto Manuel Salgado e do atelier Risco. Ainda assim, na atribuição do Prémio Secil 2004 (atribuído ao Estádio de Braga), o membro do júri Nuno Portas divergiu da unanimidade para sublinhar “a saudável diferença do fazer”, entre a estratégia radical de Souto de Moura e a articulação urbana do atelier Risco. Portas queria valorizar a capacidade de estabelecer compromissos e articulações complexas que conferiram ao Estádio do Dragão a mais bem-sucedida integração urbana dos estádios de 2004. Para além de ser um estádio, o projecto do atelier Risco era também uma rótula articuladora para juntar duas zonas da cidade separadas pela Via de Circulação Interna e, não só foi capaz de gerar em torno de si uma urbanidade que dissolveu a dimensão monumental e celebrativa do estádio, como também deu espaço ao uso quotidiano da cidade para além das multidões em dia de jogo. Usando uma metáfora futebolística, podemos dizer que o Estádio do Braga ganhou pelo seu ataque implacável e virtuoso (sem descurar a defesa), e o Estádio do Dragão foi reconhecido pela sua paciência e rigor defensivo.

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Cristiano Ronaldo treinou esta semana com a selecção nacional, na Cidade do Futebol, em Oeiras: o campo de treinos dos craques é suposto estar protegido de olhares indiscretos Rafael Marchante/ REUTERS

Metáforas à parte, a experiência do Dragão conferiu ao atelier Risco competência no domínio especializado dos equipamentos para futebol. Seguiram-se vários projectos não realizados, em 2006 para o Estádio Panathinaikos, em Atenas na Grécia (40 mil lugares), em 2011 para o Grande Estádio de Casablanca, em Marrocos (80 mil lugares), em 2012 para a renovação do Estádio Al-Hilal, em Riade, na Arábia Saudita, e Estádio do Santos FC, em São Paulo no Brasil (38 mil lugares). Essa competência terá estado na origem da eficiência da sua proposta no concurso limitado que a Federação Portuguesa de Futebol lançou em 2013 para construir a sua sede. Tal como no Dragão, a nova Cidade do Futebol não brilha pela radicalidade inventiva da arquitectura, mas é uma obra eficaz a resolver com sobriedade o conjunto de problemas do projecto. É uma eficiência que desdenha das obras de excepção e encontra um ponto de referência capaz de qualificar a actividade da construção e a transformação da cidade.

Um centro de estágios

A Cidade de Futebol tem como objectivo concentrar num lugar permanente os espaços de trabalho das equipas técnicas e dos jogadores em treino para as 22 selecções nacionais de futebol. Entre essas selecções inclui-se, naturalmente, a dos craques, cuja natureza mediática exige procedimentos e cautelas singulares na organização dos espaços e dos movimentos.

O lugar onde foi implantada é muito peculiar. Trata-se de uma posição sobranceira à linha de vale que escorre para o Tejo, com a barreira viária da A9/IC18 a nascente, acessos viários e rotundas sobredimensionadas a norte e poente, e terrenos expectantes no vale a sul. Resumindo: o terreno é um enclave gerado pela tecnocracia da engenharia rodoviária. Uma vez que os campos de futebol são grandes e planos, a topografia complica ainda mais os dados do problema: como conciliar as plataformas dos campos com as pendentes do terreno? Os três campos encaixaram-se em patamares sucessivos, gerando muros de suporte que garantem autonomia e articulação entre eles, particularmente nos caminhos de acesso aos balneários e equipamentos de apoio. O edifício principal encontra a sua forma e a sua posição entre as linhas de desfasamento dos campos e dos vários níveis dos muros de suporte, como se prolongasse braços nas várias direcções para envolver o conjunto numa entidade única. Com essa estratégia de implantação e distribuição funcional, o enclave parece deixar de ser um recinto fechado e o edifício e campos passam a constituir uma unidade coerente.

O desenho do conjunto é inteligente ao ponto de fazer desaparecer a evidência das barreiras físicas, tornando aparentemente naturais as separações de movimentos e os impedimentos visuais. O resultado é diluir a exigência programática de separação entre várias funções, particularmente na forma como o edifício gere a relação delicada entre a imprensa e a selecção principal. O campo de treinos dos craques é suposto estar protegido de olhares indiscretos, mas também é aquele que tem uma bancada para o público poder assistir aos treinos abertos e incentivar os jogadores. A imprensa deve poder aproximar-se e compreender o funcionamento do conjunto, como numa cidade aberta e transparente, mas a disposição das funções também tem de garantir a privacidade necessária dos jogadores e equipas em momentos sensíveis de preparação para competições de grande responsabilidade. Se do lado dos jogadores estes compromissos são evidentes, o edifício também responde aos compromissos de relação entre infra-estruturas técnicas e espaços administrativos, entre balneários e zonas médicas, espaços de preparação das viagens das equipas, estacionamentos de visitantes, funcionários, jogadores, imprensa, etc. A obra corresponde à conciliação dessas exigências, para além de cumprir os preceitos técnicos da construção.

Para garantir a coerência do conjunto, a obra parece prescindir de uma identidade arquitectónica forte e é difícil descrever o edifício numa frase. Mas à medida que se descobrem os seus espaços, compreende-se que a cada gesto corresponde a capacidade de gerar espaços qualificados. A composição em L dos corpos da administração e imprensa assegura uma entrada formal e condigna com a instituição; a autonomia da bancada para o público estrutura as passagens reservadas e públicas; a sobreposição dos balneários e centro técnico permite uma coordenação efectiva entre as funções; a posição da administração no piso mais elevado dá ao edifício principal dimensão perceptível e visível no sarilho rodoviário envolvente. Ou seja, todos os gestos de compromisso apontam para uma forma identificável e clara em consonância com a qualidade do uso.

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O trabalho do atelier P06 transforma em textura de parede símbolos da identidade nacional Daniel Malhão

Um projecto colectivo

Construído em betão armado aparente — que permite aos muros de suporte e às bancadas confundirem-se com o edifício propriamente dito — com muros de gabião e revestimentos cerâmicos de cor grená, o edifício tem uma expressão inequívoca do nosso tempo. Mas não é certo se o “nosso tempo” é o final do século XX ou o futuro do século XXI. A horizontalidade dos planos de betão fazem recordar os tempos áureos do movimento moderno, em meados do século XX, um tempo em que a arquitectura pública cumpria uma função de modernização das instituições e do espaço da habitação e em que o progresso tinha a missão clara de valorizar as condições da vida colectiva. É a linguagem de um estilo internacional em que, de Santiago do Chile a Moscovo, de Maputo a Copenhaga, de Tel Aviv a Teerão, se encontram sinais de partilha na expectativa do futuro. Nesse tempo, a arquitectura e a construção não tinham como missão a afirmação da sua própria identidade, mas sim garantir o seu contributo para a transformação social que se reflectia sobretudo no espaço urbano. Era uma arquitectura anónima, não porque prescindia do autor, mas porque tinha autores empenhados na construção colectiva da cidade. É essa a linguagem que se reencontra, sem pretensões, na Cidade do Futebol.

A neutralidade da linguagem remete para a natureza do atelier Risco, desde a eficiência urbana do Estádio do Dragão até à nova configuração do escritório após a saída do seu fundador, o arquitecto Manuel Salgado. Agora o atelier é comandado por um colectivo de arquitectos de outra geração — Tomás Salgado, Nuno Lourenço, Carlos Cruz e Jorge Estriga — dentro do qual o projecto da Cidade do Futebol foi coordenado por Tomás Salgado, tendo como responsável de projecto Jorge Estriga numa equipa que integrou também João Almeida, Carlos Cruz e Luís Torgal no projecto de arquitectura, Cristina Picoto, Tomás Salgado e Nuno Gusmão nos espaços interiores e as equipas da P06 com Nuno Gusmão no design de ambientes e sinalética e da NPK no paisagismo, com Leonor Cheis e José Lousan. Isto para além de todos colaboradores de projecto e especialidades técnicas. Esta pluralidade de autores até pode ser normal em projectos de arquitectura desta complexidade, mas numa visita à obra é preceptível que todos se reconhecem no resultado, apontando com prazer a natureza dos contributos de uns e de outros e esse sentido de obra colectiva.

A chave para o êxito desse sentido de partilha é o rigor da linguagem e o equilíbrio da composição das formas construídas. Usando de novo a metáfora do futebol, é necessário que a estratégia esteja bem delineada e a orientação do jogo bem composta, para que todos os jogadores encontrem a sua posição e contribuam para a dimensão colectiva da táctica. Isso não se compadece com arbitrariedades técnicas ou delírios de circunstância e a linguagem da obra adopta essa neutralidade que permite a coerência do resultado. O perigo desta táctica é cair na mediocridade da tecnocracia, o que se observa em tantos projectos e obras correntes de grandes escritórios. Mas este não é um desses casos e, ao conversar com os múltiplos autores, transparece a capacidade de identificação pessoal e a satisfação do reconhecimento entre autor e obra. De um modo paradoxal, é a dimensão corporativa da obra, e a inscrição dos sinais visuais da identidade institucional da Federação Portuguesa de Futebol, que abre espaço a essa dimensão performativa, ou lúdica, do projecto. O trabalho do atelier P06 e do designer Nuno Gusmão, em tantas outras parcerias com designers de mobiliário e equipamento, confere aos espaços interiores um refinamento nos materiais de acabamento e na integração de elementos utilitários (tectos acústicos que ganham expressão em lã do burel, sinalética que se transforma em textura de parede, etc.). Também nos arranjos exteriores, o atelier de paisagismo NPK resolve aspectos da integração do conjunto — desde bacias de retenção de àguas a passadiços convenientes para a estrutura urbana envolvente — que, não só resolvem questões objectivas, como contribuem para a coerência e força do conjunto.

Questões em aberto

Jorge Estriga, um dos arquitetos responsáveis pelo projecto, descreve o projecto em função do objectivo do edifício, “um lugar de foco onde jogadores, técnicos, colaboradores e dirigentes convergem numa só missão e preparam compenetradamente as suas tácticas”. Tem a esperança que a arquitectura possa corresponder, sem sobressaltos, à missão maior a que obra se destina. Essa generosidade contrasta com o endeusamento para onde os craques da bola são relegados. Muitas das peripécias e exigências do edifício resultam de um programa objectivo para transformar os jogadores em seres de um outro mundo, alimentando a cadeia de adoração e ódio a que estão sujeitos e que, no limite, sustenta a máquina comercial poderosa que as paixões do futebol põem em marcha. Porque se trata de um edifício sereno, essencialmente pragmático e sem rasgos de sobrenatural, a honestidade da sua arquitectura contrasta com a encenação que o mundo do futebol opera sobre os seus agentes. Se pensarmos na arquitectura como suporte discreto para o mundo, esta não é uma contradição insanável: uma arquitectura discreta dissimula-se e oferece o palco às estrelas, os jogadores e as suas jogadas. Mas a principal dúvida que esta arquitectura releva é precisamente essa: até que ponto a arquitectura pode e deve aspirar a ultrapassar-se a si própria, a sublimar a nossa condição? A Cidade do Futebol é um exemplo de uma obra clara, transparente e eficiente. Nos dias que correm, essa modéstia é só por si uma conquista, tão necessária num momento em que a cada esquina nos deparamos com fracassos da inventividade transgressiva. Assim se faz cidade.

 

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