Deficientes seriam obrigados a conviver com cadáveres de colegas

Padre de 85 anos que dirigiu durante seis décadas uma das Casas do Gaiato, em Beire, é acusado de 13 crimes de maus tratos. Foi afastado da instituição no ano passado por ordem do tribunal.

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Na obra do Calvário residiam cerca de 50 deficientes físicos e mentais adultos Paulo Pimenta

É um cenário de extrema negligência o que é traçado na acusação do Ministério Público ao padre octogenário que, ao longo de seis décadas, dirigiu a obra do Calvário, instituição da Casa do Gaiato criada para acolher doentes incuráveis e deficientes e que funciona numa quinta em Beire (Paredes). Deficientes que seriam amarrados pelos pulsos a varandas e braços de cadeiras, agredidos com bofetadas, fechados em quartos isolados e outros que terão mesmo sido obrigados a conviver, durante um ou dois dias, com um colega morto.

Os utentes da obra do Calvário, cerca de 50 adultos com deficiências mentais e físicas, raramente iam ao hospital ou a qualquer unidade de saúde. Eram tratados praticamente só por voluntários. E, por vezes, seriam medicados pelo próprio padre, um homem de 85 anos afastado em Maio do ano passado da instituição por ordem da juíza de instrução.

“Estavam assim todos entregues aos cuidados e às habilidades naturais do arguido para tratar da sua saúde, incluindo na administração de medicamentos”, refere o Ministério Público, que diz que o sacerdote também não providenciava a compra de cobertores, fraldas, camas adaptadas ou cadeiras de rodas em número suficiente. Nem autorizaria o aquecimento das instalações durante os meses de Inverno.

“Em determinadas alturas até eram obrigados a conviver durante um ou dois dias com um colega morto, que era deixado na sua camarata até ao funeral, tendo eles que suportar o mau cheiro e sofrer o desgaste emocional por ver ali um amigo e companheiro, causando-lhes evidentes perturbações psicológicas, tratando-se de pessoas com saúde mental fragilizada”, descreve a acusação.

Não é o único episódio insólito. Um paciente que sofria de uma doença mental que o fazia comer as próprias fezes esteve “vários anos” durante todo o dia sentado numa cadeira sanitária, “amarrado com tiras de pano, resultando daí um sofrimento e agonia constante" e "ferimentos posicionais nas pernas, nádegas e pulsos”, escreve o procurador José Ribeiro Teixeira.

O magistrado faz questão de frisar que a míngua de meios humanos e materiais não aconteceu por falta de dinheiro. “A instituição sempre dispôs de meios financeiros, provenientes de donativos e outras fontes de receitas, que lhe permitiriam sustentar a aquisição dos bens necessários ao bem-estar dos seus utentes e ainda contratar pessoal técnico especializado”, nota o magistrado.

Idas ao hospital só eram autorizadas “em casos extremos ou terminais”, diz a acusação. Exemplo disso foi um episódio que ocorreu em Julho de 2014, em que Paulo, um doente que sofria de epilepsia, caiu e rebentou o lábio. Um voluntário quis levá-lo ao hospital. Mas o padre recusou. Em vez disso encaminhou-o para a zona da cozinha, onde, segundo o Ministério Público, o medicou e suturou. Ainda nessa noite, Paulo morreu. “Sem que fosse dado conhecimento às autoridades competentes, não constando do certificado de óbito a causa da morte”, descreve a acusação.

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Foi esta morte que levou um voluntário à Casa do Gaiato de Paços de Sousa. Exigia falar com o padre responsável por toda a obra do Gaiato, Júlio Pereira, e não arredaria pé sem o fazer. Dizia-se disposto a entrar em greve de fome. Desconfortável com o episódio, é a própria instituição que alerta as autoridades. A GNR faz o auto e inclui a denúncia de uma morte suspeita relatada pelo voluntário.

O caso segue para o Ministério Público, que delega a investigação na Polícia Judiciária do Porto. É depois entregue a uma brigada que investiga homicídios. Dois corpos são exumados, mas as provas só atestam maus tratos.

A tratar dos utentes praticamente só havia voluntários. Nunca se contrataram “profissionais especializados na área da saúde mental, de geriatria, de terapia ocupacional, nem sequer técnicos de enfermagem”, diz o Ministério Público. 

A acusação descreve vários “castigos” que o padre aplicaria a alguns utentes. Um deles, por exemplo, foi fechado “com a porta trancada num espaço destinado a arrumos de alfaias agrícolas [...], semelhante a uma cela, sem casa de banho, onde permaneciam dias seguidos sem qualquer tipo de cuidado higiénico, assistência médica ou psicológica”, lê-se na acusação.

Noutras ocasiões, por ordem do padre, o mesmo utente chegou ainda a ser levado para um "silo de cereais, com uma escada que era retirada durante a sua permanência”. São descritas agressões físicas, a maior parte das vezes bofetadas e bengaladas, mas também outro tipo de castigos, como impedir que fosse servida água a um homem acamado ou retirar a refeição a um idoso de 75 anos. Confrontado por alguns voluntários para que alguns utentes fossem assistidos, o padre ripostaria. “Não faz mal nenhum, que morra, vai para o monte para a beira dos outros”, cita a acusação.

A direcção da Obra da Rua reagiu com uma nota na sua página do Facebook em que defende que o padre que fez, há 60 anos, "algo que nunca havia sido feito, nem em Portugal nem em qualquer outra parte do mundo" — acolhendo os "completamente abandonados, que até os hospitais mandavam 'viver' para 'debaixo da ponte'” — está agora a ser vítima de "achincalhamento e desprezo". “Só a ignorância e um olhar rasteiro justificam esta atitude”, considera.

"O nosso companheiro padre amou até ao fim os seus doentes, brincou com eles, lavou-os, deitou-os, levantou-os todos os dias pelo nascer do dia, alimentou-os, cuidou das suas enfermidades com qualificação técnica sem canudo (há 60 anos não havia centros de saúde, nem nada para os incuráveis)”, frisa. O advogado do padre não quis prestar mais declarações.

Maria de Belém Neto, voluntária na obra do Calvário desde 2009, garantiu ao PÚBLICO que, ao longo de todos estes anos, nunca viu o padre a dar “sapatadas” (bofetadas) aos deficientes e assegura que estes tinham cuidados de saúde adequados, apesar de só recentemente a casa ter admitido dois enfermeiros, depois de a polícia lá ter ido. “Ao sábado ia lá um médico e às quartas-feiras outra médica e, quando havia uma situação mais urgente, o padre chamava uma ambulância”, assegura. A única vez que presenciou uma situação mais violenta foi quando o sacerdote obrigou um deficiente a vestir-se. “Ele gostava de andar nu pelo pavilhão”, descreve Maria de Belém, para quem esta quinta funciona com uma “organização fantástica, foram do comum”. Como? “Os deficientes entreajudam-se. O espírito da casa passa por pôr os doentes a tratar uns dos outros”, explica.

De resto, desvaloriza as acusações. "Quando o padre começou a trabalhar ali, não havia postos médicos nem nada. Ele ganhou uma certa experiência e suturava pequenos golpes. Mas nunca deu mais do que um ou dois pontos", diz. Quanto aos deficientes que seriam amarrados, Maria de Belém precisa que o que ali se faz não é amarrar, mas sim imobilizar. Recorda o caso de uma mulher que "dava sapatadas na cara de tal forma que foi necessário pôr-lhe um cinto para que não se magoasse”. “Vi o mesmo no hospital, quando a minha irmã caiu", acentua.

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