Brasil: uma democracia em risco nos trópicos

Pagamos um preço por viver em democracia: as regras, sejam elas quais forem, concordando ou não com elas, precisam ser estritamente observadas.

Passadas mais de duas décadas desde o ocaso de um regime autoritário que cerceou liberdades e relegou o Brasil a uma condição de mediocridade no quadro geopolítico mundial, a Constituição de 1988 incorporou valores seminais de defesa de um estado de direito democrático sólido. Alçou a patamar de primeira grandeza os direitos sociais e individuais. Em outubro daquele ano, o novo ordenamento constitucional brasileiro inaugurou uma fase completamente diferente da anterior em termos de respeito pelas liberdades individuais.  

Mais importante do que isso: a Carta de 1988 esboçava um campo de lutas legítimas pela conquista de novos direitos, ao mesmo tempo em que conferia as condições de efetivação dos direitos que já estavam inscritos em suas páginas. Desde o seu nascedouro, tratou-se de uma Constituição popular, muito distinta de textos constitucionais anteriores, que se preocupavam, do início ao fim, com o atendimento de demandas burguesas, cujo resultado sempre foi o aprofundamento da abissal desigualdade social que constitui a nossa pior face. Com efeito, a partir daquele momento, organizações da sociedade civil, movimentos sociais e o conjunto da população brasileira começaram a contar com uma atmosfera constitucional arejada: estavam lançadas as bases para que lutas fossem travadas por mais direitos. Ao contrário do regime anterior, o conflito entre visões e desejos, nos planos político, econômico, cultural e social, não era mais um problema: integrava, ao revés, a ideia mesma de espírito democrático, como em qualquer democracia de alta intensidade.

Ainda que tenha representado o início de um capítulo promissor na vida política brasileira, a Constituição de 1988 carece de um trabalho continuado de todos os cidadãos para que seja efetivada, e sua autoridade, respeitada. Muito do que lá está escrito escrito não são direitos já conquistados; representam, como em qualquer texto constitucional, o horizonte para o qual o povo, representado por um Poder Constituinte originário, deseja que o país caminhe. Está na essência da letra constitucional a ideia de que a democracia não é um regime acabado: necessita de doses diárias de aperfeiçoamento para que se mantenha em funcionamento.

Como uma sociedade não é uma operação matemática, havendo, pois, um contingente razoável de imprevisibilidade nos rumos que toma, esse aperfeiçoamento deve acontecer em função das imperfeições que a democracia vai revelando no decorrer da vivência democrática quotidiana. Isso possui um duplo significado: primeiro, a intensidade de uma democracia depende da melhoria de suas virtudes, mas muito mais da luta pela correção de suas imperfeições; segundo, o aperfeiçoamento desse regime só ocorre com injeções inesgotáveis de mais e mais democracia. Nessa equação, qualquer movimento que negue tal premissa só pode representar défice democrático.

É aqui, portanto, que situo a atual crise política vivida no Brasil, da qual podemos sair mais ou menos fortalecidos do ponto de vista do progresso de uma democracia que ainda não comemorou a terceira década. Dessa crise, pode derivar a destituição de uma Presidente da República, sem que ela tenha cometido qualquer crime de responsabilidade, pressuposto situado nas entranhas da Constituição, sem o qual o processo de impeachment se reveste de grave atentado ao documento que inaugurou entre nós um estado democrático de direito. Sem argumento convincente, a ponto de o saber jurídico nacional estar fraturado, tentam enquadrar, na categoria de tais crimes, duas posturas de Dilma Rousseff que não representam qualquer atentado ao ordenamento jurídico brasileiro, porque não possuem a necessária previsão legal: as ditas pedaladas fiscais e a assinatura de decretos de suplementação orçamentária.

Ambas as condutas, constantes da denúncia assinada por três juristas, e aceita por Eduardo Cunha, um presidente da Câmara enredado em escândalos de corrupção, são práticas corriqueiras na Administração Pública do Brasil: governadores e prefeitos recorrem a elas todos os dias, sem contar que todos os anteriores presidentes da república as cometeram ao longo de seus respectivos mandatos. Só agora, num gesto de franco atentado à segurança jurídica prevista na mesma Constituição, um conjunto de forças políticas, judiciais e mediáticas resolveu transmutar em crime de responsabilidade o que era e continua a ser visto, em Estados e municípios, como conduta habitual. E o pior: recorrem ao texto constitucional para respaldar algo que o próprio texto repudia. Trata-se de inominável esquizofrenia.

Um exemplo, apenas, para que entendamos com clareza o que se passa: Dilma Rousseff é acusada de ter cometido crime por ter assinado seis decretos de crédito suplementar, que — é bom que se diga — não aumentaram os gastos do governo. Por sua vez, em prática exatamente igual, o governador de São Paulo, do mesmo PSDB que agora pede a saída de Rousseff, assinou, no ano passado, mais de três dezenas de decretos com o mesmo teor. Na São Paulo de Geraldo Alckmin, sim; na Brasília de Dilma Rousseff, não. Não é demais recordar que o atual vice-presidente, Michel Temer, também autorizou decretos semelhantes em vários momentos em que assumiu interinamente a presidência durante as viagens de Dilma ao exterior. Nem Alckmin, nem Temer foram questionados em suas condutas. Não é crime de responsabilidade. O mesmo não se diz em relação a Rousseff. Como se vê, falta ao atual processo de impedimento a luz radiante da legalidade, sem a qual cairemos, indefesos, no pântano da insegurança jurídica e do arbítrio.

É de notar que a democracia é um regime que necessita do empenho de todos para viver: impeachment e crime de responsabilidade são expressões que compõem o a letra constitucional, sem qualquer dúvida. Não são, portanto, significantes vazios e, por isso, devem ser interpretados em sentido estrito. Num expediente de tamanha gravidade, não é razoável acreditar que o constituinte apelaria à execução de exercícios complexos de hermenêutica jurídica para aferir a existência ou não de crimes de responsabilidade. Porque assim não o desejava, foi preciso no estabelecimento das práticas que podem ser enquadradas como dolo capaz de conduzir ao processamento de um presidente. As condutas que imputam a Dilma Rousseff como supostamente criminosas não o são, porque não figuram nesse rol de crimes estipulados com clareza angelical pela Constituição de 1988. Se não são crimes as condutas, chamar a este processo impeachment é mero exercício retórico para esconder desígnios que atentam contra a ideia de República. Trata-se, portanto, de golpe travestido de impeachment.

Um golpe que ultrapassa o tempo imediato e que poderá reinstalar no Brasil um fator de profunda instabilidade política, na medida em que parte substancial das ruas não aceitará a eventual assunção ao Poder de um aglomerado governativo que não resulte da vontade soberana das urnas. A crise econômica — agora utilizada por deputados e senadores como argumento pró-impeachment — não é resultado exclusivo de políticas eventualmente equivocadas dos governos petistas: há um contexto internacional predatório que afetou o Brasil, e há um Congresso Nacional que se furtou da sua responsabilidade de discutir e votar medidas que ajudem a retirar o país de um momento economicamente complicado. Pertence à crise política, portanto, acelerada por setores oposicionistas inconformados com o resultado eleitoral de 2014, parte substancial do ônus pelo aprofundamento da situação da economia brasileira.  

Ao conjunto de forças políticas, o puzzle antidemocrático é composto ainda por certos setores da imprensa nativa. Dois dos principais jornais brasileiros, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, declararam já, em editoriais de circunstância, apoio ao impedimento de Dilma Rousseff, numa declaração de que desconhecem regras básicas inerentes a qualquer sistema de governo que leva o nome de presidencialista. Em regimes como esse, a figura do impeachment só é acionado mediante comprovação inequívoca da existência de crime de responsabilidade dolosamente cometido pelo chefe do Executivo nacional. Afora isso, nenhum argumento com base em pesquisas de popularidade pode prosperar ou em políticas governativas pode prosperar como base para impedimento. É a Constituição que o diz.

Ao contrário do parlamentarismo ou do semi-presidencialismo, caso português, o processo de impedimento não se confunde com a moção de censura, que pode ser instada tão logo o Parlamento entenda que o Governo em funções perdeu as condições de governabilidade. No presidencialismo, porém, esse não é um juízo aceitável. Sem um crime de responsabilidade, Barack Obama, por exemplo, jamais poderia ser punido com um impedimento, ainda que 99% dos eleitores norte-americanos desaprovassem o seu governo. É o que se passa no Brasil: Dilma Rousseff realiza um governo preenchido de fragilidades, rodeou-se de técnicos incompetentes para a gestão de diversas pastas de seu governo, não consegue reagir à crise que afeta a economia, tendo adotado políticas austeras que pesaram no bolso dos  mais pobres, possui uma base de apoio fraca no Parlamento e enfrenta os reflexos que a Operação Lava-Jato, tendo, pelo somatório de todos esses fatores, pouco mais de 10% de aprovação popular. Obviamente, não faltam motivos para descontentamento com este quarto mandato consecutivo do Partido dos Trabalhadores à frente do Palácio do Planalto. Nada disso, porém, pode respaldar o impedimento de uma Presidente que, apesar de comandar um governo com sérios problemas, não cometeu qualquer das infrações previstas no texto da Constituição. Nenhuma. Pagamos um preço por viver em democracia: as regras, sejam elas quais forem, concordando ou não com elas, precisam ser estritamente observadas.

Não se trata, aqui, da defesa personalíssima da Presidente do Brasil, mas, sim, de uma luta digna pelo respeito à Carta de 1988, cuja manutenção garantirá, a quaisquer forças políticas, da esquerda à direita, o direito de disputar o Poder, mas dentro de processos legítimos, sem a suspensão dos ritos e calendários constitucionais. Só assim poderemos avançar culturalmente, seguindo o que Rui Barbosa, eminente jurisconsulto dos primórdios da República no Brasil, uma vez disse, com muita propriedade: fora da Lei não há salvação. Nesse jogo de tudo ou nada que ora ocorre no Brasil, a democracia pode sair mais forte. Caso o desfecho seja outro, que continuemos a lutar para que a chama democrática, mesmo em risco de apagamento total, volte a brilhar com intensidade. Aos que destilam bravatas contra a democracia, que a História os julgue com rigor.

Doutorando em Comunicação da Universidade de Brasília. Investigador do Núcleo de Estudos em Mídia e Política da Universidade de Brasília (NEMP-UnB) e do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20/UC)

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