Guiné-Bissau: Alimentar o comércio de escravos de Cabo Verde

Porto de Cacheu

Quando se chega ao porto de Cacheu, cidade no Noroeste da Guiné-Bissau, avistam-se poucas pessoas nas ruas mas muitas crianças a brincar no pontão que entra pelo rio adentro. Chove, chuva intermitente de Setembro, e a cidade de Cacheu está cinzenta. Há um café-restaurante que serve uma ou outra refeição, mas parece abandonado. Um grupo de homens partilha um peixe. Esta cidade – que chegou a ser capital da Guiné-Bissau e que fez parte da zona dependente de Cabo Verde até ser criada a Guiné Portuguesa, em 1879 – serviu de emissora de escravos. Para isso foi até criada a Companhia de Cacheu no século XVII.

Cacheu é um dos pontos que os portugueses escolheram para fazerem comércio ao longo da costa africana, trocando ou vendendo os seus produtos. Tornou-se dos principais portos “em termos de resgate de escravos”, afirma o historiador Leopoldo Amado.

A partir de Cacheu controlava-se o negócio das zonas vizinhas — e todas elas contribuíram para que o comércio dos escravos florescesse, continua o historiador. Era em Cacheu que vivia o capitão-mor e os comerciantes portugueses, situação que se manteve praticamente durante todos os anos que durou a escravatura. O resgate efectuava-se em Cacheu e noutros pontos criados para favorecer o negócio. Os portugueses traziam barras de ferro, tecidos, bugigangas e, mais tarde, álcool. Em contrapartida, recebiam escravos, pimenta e couro.

Para esse comércio, havia intermediários entre os armadores e os régulos africanos. Eram os grandes comerciantes que residiam em Cacheu e que aí operavam, no quadro dos privilégios régios concedido aos moradores de Cabo Verde. Ali viviam também os lançados — homens brancos, “alguns deles de origem judia” que, à revelia das autoridades da época, funcionavam como intermediários, por serem perseguidos na Europa ou condenados. Acabavam, assim, por encontrar forma de ganhar a vida através do comércio de escravos. É, pois, neste quadro que quer os capitães-mores quer os poderosos comerciantes se queixavam muito dos lançados, com quem eram obrigados a partilhar os dividendos do comércio.

Aliás, não eram os moradores portugueses de Cacheu que iam capturar escravos, continua. “As pessoas eram escravizadas porque tinham sido presas numa guerra, eram de castas inferiores, tinham dívidas que não podiam pagar. Os reis locais e as elites africanas da altura comercializavam directamente com os moradores ou através dos lançados. Os comerciantes, por sua vez, comercializavam também com os negreiros.”

Na época, o nome “lançado” estava ligado “ao indivíduo que se vende a si próprio, sem moral, descaracterizado e que conseguia viver nas matas, no sertão”. “Há relatos de esses indivíduos ficaram completamente cafrealizados (africanizados), facilitando um maior lucro com este negócio.”

Os guineenses comercializavam com negreiros portugueses e de outras nacionalidades, mesmo quando a lei régia o proibia. Logo, existia uma constante tensão entre os moradores e as autoridades. “Era um negócio rentável. [Os escravos ] valiam algum dinheiro. Eram ladinizados em Cabo Verde, por via de regra; depois eram transportados para as Índias Ocidentais, onde valiam muito mais. Em Cacheu houve uma ténue ladinização, pois também se comercializavam directamente escravos com os armadores estrangeiros.”

O aparecimento das grandes companhias de navegação e comércio — entre as quais, a Companhia de Cacheu e Rios da Guiné (1676), a Companhia de Cabo Verde e Cacheu (1690) e a Companhia do Grão-Pará e Maranhão (1755), que obtiveram todas o exclusivo do comércio desta região — “contribuiu igualmente para a decadência das ilhas de Cabo Verde”, conclui Leopoldo Amado.

Igreja de Nossa Senhora da Natividade

Um dos locais onde se fazia a ladinização era na Igreja de Nossa Senhora da Natividade, do século XVI, considerada a primeira igreja portuguesa erigida na costa ocidental africana. Ficou danificada no século XVII devido a cheias no rio e já foi reabilitada várias vezes, segundo Leopoldo Amado, mas hoje em dia está bem conservada. É um ponto de peregrinação dos católicos da Guiné-Bissau. “Chegou-se a converter 600 a 800 africanos aqui num dia”, afirma o historiador.

Houve um período de muita fome em Cacheu, e a maior parte dos escravos morreu por falta de alimentos e por doença. Algumas vozes em Cacheu criticaram os comerciantes dizendo que maltratavam os escravos.

“Mandaram uma representação à coroa queixar-se. O que prevalecia era a ideia de lucro. Os esclavagistas criaram toda uma teoria de que era preciso primeiro cristianizar, salvar a alma, e salvando a alma se justificava tudo o resto. Aos olhos da época, isto amenizava os maus-tratos e outras coisas que pudessem ser moralmente condenáveis.”

As ruas em Cacheu são hoje feitas de terra encarnada e muitas das casas baixas têm uma arquitectura de estilo colonial. Algumas são do século XVI e XVII, edifícios “pomposos para a altura”, como nota o historiador. Isso demonstra a riqueza que existia na cidade. “Os comerciantes são poderosos, têm bastantes posses e dão-se ao luxo de contrapor o capitão-mor, autoridade máxima da coroa portuguesa”, continua o historiador. Há relatos de que alguns moradores tinham as suas próprias peças para se defenderem e que andavam constantemente de costas voltadas para o capitão-mor. No entanto, a Revolução Francesa defendera os conceitos de liberdade, igualdade e fraternidade entre os homens e as transformações industriais dos séculos XVIII e XIX condicionaram positivamente o movimento antiesclavagista, afirma.

“Esse comércio diminuiu, até acabar na segunda metade do século XIX, altura em que Portugal tentou reorganizar a economia da Guiné recorrendo aos produtos tropicais, sobretudo ao óleo de palma e ao amendoim. É nesse sentido que costumo dizer que Cacheu é, hoje em dia, uma sombra de si própria, ou seja, fruto de um ciclo de comércio de escravos que se encerrou e que apenas sobrevive pela grandeza desse passado.”

Forte de Cacheu

A Guiné-Bissau foi uma colónia de exploração, não de fixação, diz Leopoldo Amado. Era um território que alimentava o comércio de escravos de Cabo Verde — o arquipélago prosperou devido ao comércio que saiu daqui, defende.

Os portugueses estiveram no país através da administração, mas nunca houve uma “política de conquista e fixação na medida em que o desempenho económico de África era mínimo (ao contrário do que acontecia com o Brasil e o Oriente) e a resistência dos povos africanos ao avanço europeu também contribuía para a fraca ocupação do terreno”, lembra. Por isso “os portugueses tiveram imensas dificuldades em se estabelecerem nesses pontos”. Portugal “nunca conseguiu” ter o “domínio exclusivo” do comércio de escravos “destes rios da Guiné”. “Era preciso criar um forte para dissuadir as investidas dos espanhóis, franceses, e mesmo holandeses.”

Os moradores eram constantemente assaltados e a guarnição portuguesa era insuficiente para fazer face às investidas de outras potências coloniais: assim se criou o Forte de Cacheu em finais do século XVIII. Situado mesmo à beira do rio Cacheu, e hoje ostentando estátuas de várias figuras históricas trazidas de outros locais, como a de Honório Barreto, governador da Guiné-Bissau, o forte ainda hoje mantém os canhões apontados para vários lados, e para o rio.

Lá dentro, neste pequeno quadrado, cresceu o capim. “O forte era para ser mais robusto”, lembra o historiador.

“Começou a ser concebido depois de 1640 porque a coroa tinha problemas financeiros. Foi nomeado o capitão-mor chamado Gambôa [de Ayalla] que tinha como missão principal construir este forte porque era fundamental para defender as posições portuguesas e proteger os moradores.” A construção passou inclusivamente por casos de corrupção e desvios de dinheiro, que não permitiram que fosse construído na devida altura, revela.

“De qualquer forma, nota-se que o local escolhido tem um ângulo para poder fazer face a investidas marítimas de outras potências coloniais, quer a montante, quer a jusante do rio. Mas é também um forte com canhões virados para a povoação, fazendo antever a possibilidade de as autoridades portuguesas serem atacadas pelos africanos. Isto acontecia amiúde, e os africanos chegavam ao ponto de humilhar e exigir tributos aos moradores.”

No entanto, em geral, o forte conseguiu dissuadir várias investidas e permitiu que o resgate de escravos pudesse florescer: Leopoldo Amado julga que se chegaram a cerca de 3 mil escravos por ano.

“Se considerarmos que esse resgate durou cerca de três séculos, estaremos em condições de dizer que este forte permitiu que pudessem sair cerca de um milhão de escravos de Cacheu e de povoações vizinhas. Por isso, a importância de Cacheu sobreviveu até aos nossos dias através da história lendária das suas grandes famílias que prosperaram e se multiplicaram.”

Esta reportagem foi realizada em parceria com:

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As pessoas eram escravizadas porque tinham sido presas numa guerra, eram de castas inferiores, tinham dívidas que não podiam pagar." Leopoldo Amado, historiador
Joana Gorjão Henriques, Frederico Batista