Humorista alemão processado pela Turquia suspende programa

Ancara quer que seja julgado por causa de um poema lido num programa satírico de TV e que considera insultuoso para o Presidente Erdogan.

Foto
Jan Böhmermann é apresentador de um canal de nicho, que em 2015, teve pouco mais de um 1% de audiência, mas a polémica tornou-o conhecido em toda a Alemanha Morris MacMatzen / Reuters

O comediante alemão Jan Böhmermann, que a Turquia quer ver julgado por causa de um poema satírico que ridiculariza o Presidente turco Recep Tayyip Erdogan, decidiu suspender o seu programa de televisão semanal, Neo Magazin Royale. Ancara invoca uma lei do século XIX ainda em vigor – mas que tem os dias contados – para julgar o comediante, tendo o Governo de Berlim autorizado que a queixa da Turquia seja apreciada pela justiça alemã.

O anúncio da suspensão do programa foi feito via Facebook, numa mensagem de Böhmermann, carregada de ironia, em que alega que nos últimos dias cumpriu a missão a que o programa se propôs e que tem de pensar na vida quando até a extrema-direita está ao lado de um humorista na defesa da liberdade de expressão. Uma alusão ao facto de a eurodeputada alemã Beatrix von Storch, do partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD), ter saído em defesa do humorista, contra a decisão de Merkel.

Foto
A capa da Spiegel desta semana

“Desde há três anos, eu e a minha equipa assumimos como nossa tarefa tratar, com humor, os principais temas políticos, das artes (…)”, começa por descrever o comediante, cujo rosto está na capa da edição desta semana da revista Spiegel, com o quarto crescente da bandeira turca a ameaçar cortar-lhe a garganta. Ancara pede o julgamento do humorista, ao abrigo de uma lei de 1871, sobre insultos a chefes de Estado estrangeiros, que já tinha sido usada, na década de 60, para punir os autores de um cartoon satírico para o então Xá do Irão, Reza Pahlavi, e na década de 70, pelo ditador chileno Augusto Pinochet, com sucesso, para castigar os autores de um cartaz de protesto pendurado na embaixada chilena em Bona.

O Governo de Merkel autorizou, na sexta-feira, a abertura do processo judicial, uma decisão que suscitou críticas de diversos quadrantes, incluindo dentro da coligação governamental que suporta o executivo germânico. Também na imprensa sucedem-se as críticas à decisão de Berlim, que classificam como “uma cedência” de Merkel a Erdogan.

“Acabámos de assistir ao início do fim da liderança #Merkel”, reagiu outro humorista alemão, Oliver Kalkofe, no Twitter. “Sinto-me envergonhado pela falta de coluna vertebral.” Pelo contrário, o líder da comunidade turca na Alemanha, Gökay Sofuoglu, considera que a chanceler alemã teve de decidir entre “uma crise na sua coligação ou uma crise diplomática”. E a crise na coligação foi a opção mais fácil, resumiu.

A viver sob protecção policial, Böhmermann já tinha expressado, no dia 8 de Abril, o seu incómodo pelo facto de uma sátira se ter tornado num assunto de Estado.

O canal que emitia o seu programa, a ZDFneo (disponível na plataforma digital terrestre e que se dirige sobretudo a um público entre os 18 e os 45 anos), declarou que apoiaria o comediante, caso este tivesse de responder judicialmente, mas não deixou de retirar o vídeo da sua biblioteca online.

No sábado, o humorista – que passou a ser uma estrela nacional desde que a polémica rebentou – acabaria por anunciar “uma pequena pausa televisiva”. “Deste modo, o público e a Internet podem concentra-se nos temas verdadeiramente importantes, como a crise dos refugiados, vídeos de gatinhos ou a vida amorosa de Sophia Tomalla [uma actriz alemã] ”, escreveu, “porque provavelmente haverá temas mais relevantes do que um poema dito num programa satírico”.

Em causa está um texto lido durante o programa emitido a 31 de Março. No vídeo – que se encontra online em muitos outros sites – o comediante, que vive e dirige o programa a partir de Colónia, reage às pressões feitas por Ancara para que fosse retirado da Internet um outro vídeo, emitido a 17 de Março, pela estação de televisão NDR, de Hamburgo.

O vídeo da NDR reproduz uma música, gravada para o programa Extra 3, que ridiculariza a repressão dos críticos de Erdogan, incluindo políticos, jornalistas e jornais turcos. Alude ainda ao estilo de vida alegadamente sumptuoso do Presidente, retratando-o como um político antidemocrático e autocrático, o “grande chefe do Bósforo”.

Na altura, Ancara não gostou e mandou chamar o embaixador germânico na capital turca. Em vez de obter o que queria (a retirada do vídeo), o Governo turco viu a música tornar-se viral na Internet e as críticas avolumaram-se. Böhmermann decidiu responder no seu próprio programa, em pouco mais de quatro minutos. Começa por frisar que, na Alemanha (onde vivem cerca de três milhões de turcos), aquela música está protegida pela liberdade artística e de expressão, dedicando depois um poema que o próprio considera duro para Erdogan. Nele acusa o Presidente de ser um “pateta e um covarde”, que “adora fornicar cabras e oprimir minorias”, “pontapear curdos”, “espancar cristãos enquanto vê pornografia infantil”.

Apenas insultuoso?

Na Internet não faltam manifestações de solidariedade para com o comediante. Já houve quem lançasse no Twitter a hashtag #JeSuisBöhmi, ou criticasse Merkel com a frase "Big Mother is watching you" [na Alemanha, a chanceler foi "baptizada" com a alcunha Mutti Merkel, mãezinha Merkel], mas também há quem considere que o texto é apenas insultuoso.

Num texto de sexta-feira, publicado na edição online da Spiegel, depois de a chanceler ter dado o seu aval a um processo judicial, defende-se que Merkel "tentou fazer o melhor" com esta decisão quando estava a "caminhar em cima de uma corda bamba". Isto porque se de um lado estava a protecção do direito ao humor, por outro estava em jogo o interesse de Merkel em preservar a relação Berlim-Ancara ou UE-Turquia, com o objectivo de não pôr em causa um acordo político com a Turquia para reduzir o número de refugiados que entram na Europa.

Recordando que em causa está a aplicação do artigo 103 do código penal alemão – que classifica como ilegal a injúria a chefes de Estado estrangeiros –, no mesmo texto argumenta-se que o humorista foi "inteligente" na forma como construiu o poema e o apresentou, desaconselhando até a audiência a não bater palmas porque "a crítica abusiva não é permitida".

O que é facto é que o episódio lançou a discussão sobre os limites do humor num país que "não perde muito tempo a pensar sobre a sátira, a arte e as liberdades que lhes estão associadas".

O poema "dividiu o país em dois campos". "Num deles Böhmermann é visto como um humorista político livre. Quem está no campo oposto, não conseguem ver além da natureza insultuosa do poema – as referências ao 'peido suíno' e aos 'testículos mirrados'. Estes questionam-se se vale realmente a pena defender a liberdade de Böhmermann para destilar a sua arte a partir do insulto". Mas no final, "o verdadeiro provocador é, obviamente, o próprio Erdogan", sustenta a revista.

Sugerir correcção
Ler 4 comentários