Impeachment ou não, o futuro do Governo Dilma é uma incerteza

A fragilidade em que se encontra a Presidente parece condenar o seu executivo, mesmo que consiga sobreviver à votação na Câmara dos Deputados.

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Deputados manifestam-se contra a Presidente do Brasil em plena sessão AFP/EVARISTO SÁ

Seja qual for o resultado da votação de hoje na Câmara dos Deputados sobre o impeachment, o Brasil vai acordar no dia seguinte com Dilma Rousseff ainda na presidência. O país também vai acordar mais dividido – mesmo que o muro instalado em Brasília, à frente do Congresso, para separar manifestantes a favor e contra o afastamento da Presidente comece a ser desmontado – e não menos incerto. Se dois terços, ou mais, dos 513 deputados brasileiros votarem a favor do impeachment, esta noite, o processo ainda irá passar pelo crivo do Senado, que terá de tomar duas decisões: votar pela continuidade ou arquivamento do processo e, numa segunda etapa, proceder ao julgamento da Presidente.

A derrota de Dilma na Câmara dos Deputados tornou-se iminente nos últimos dias, com a perda de apoio de vários partidos que faziam parte da sua base aliada no Congresso. Os três principais jornais brasileiros, que diariamente contabilizam as intenções de voto dos deputados, calculam que já existem os dois terços necessários para aprovar o impeachment. O Governo sofreu também uma derrota no Supremo Tribunal Federal, ao ver indeferido um recurso que pedia a anulação do processo, alegando, entre outras coisas, que Dilma teve o seu direito de defesa cerceado na comissão parlamentar especial que validou o pedido de impeachment.

Na recta final, quando membros do Governo já começavam a admitir, anonimamente, um cenário pessimista para a votação decisiva deste domingo, o Palácio do Planalto deu sinais de desorientação: na sexta-feira de manhã anunciou que nessa noite Dilma faria um discurso oficial ao país, via televisão e rádio, para defender o seu mandato, mas na tarde do mesmo dia voltou atrás e cancelou a transmissão, temendo uma onda de protestos, como os “panelaços” registados em diversas cidades nas últimas vezes que ela fez discursos oficiais ou nos tempos de antena do seu Partido dos Trabalhadores (PT). Segundo a imprensa brasileira, o recuo deu-se depois de partidos da oposição ameaçarem recorrer à justiça para impedir a transmissão.

O procurador-geral do Estado que defende Dilma no processo de impeachment, José Eduardo Cardozo, viu o discurso pré-gravado e avaliou que ele poderia trazer problemas jurídicos por causa do seu conteúdo militante num espaço que é reservado a discursos institucionais da presidência da República. O discurso, em que descreve o processo de impeachment como “um golpe de Estado” e “a maior fraude jurídica e política da História” do Brasil, acabou por ser divulgado no sábado de manhã nas redes sociais do Partido dos Trabalhadores. Nele, Dilma diz que a oposição pretende “revogar direitos e cortar programas sociais como o Bolsa Família [abono mensal para famílias pobres que tem como contrapartida a educação obrigatória dos filhos] e o Minha Casa Minha Vida [regime especial de aquisição de casa própria para famílias de baixo rendimento]”.

O vice-presidente Michel Temer, que será o substituto de Dilma em caso de impeachment, classificou a declaração da Presidente como uma “mentira rasteira”. “Leio hoje nos jornais as acusações de que acabarei com o Bolsa Família. Falso. Mentira rasteira. Manterei todos os programas sociais”, escreveu na sua conta pessoal de Twitter no sábado. Temer, que é de outro partido, o PMDB, tornou-se um rival explícito de Dilma, anunciando os seus planos de governo e sondando políticos para fazerem parte da sua equipa, sem esconder que está a contar com o impeachment.

Na sua luta pela sobrevivência, o Governo lançou uma última ofensiva junto dos deputados e, segundo a Folha de S. Paulo, terá conseguido reverter alguns votos a seu favor. Uma das estratégias procuradas é aumentar o número de abstenções ou ausências na votação deste domingo, de modo a que a oposição não consiga os 342 votos necessários para aprovar o impeachment. No sábado, Dilma cancelou a sua presença num evento com movimentos sociais para receber parlamentares “que se mostram cada vez mais sensíveis a derrotar o impeachment” na sua residência oficial, o Palácio do Alvorada. O Governo avalia que a margem de votos da oposição é pequena e pode ser ainda revertida. A ameaça parece ser suficientemente real para Temer ter desistido de permanecer em São Paulo e ter regressado a Brasília no sábado de manhã.

Mesmo que Dilma sobreviva à votação de domingo por uma margem mínima, o seu Governo, enfraquecido e impopular, sairá ainda mais fragilizado do processo. Desde sexta-feira que os deputados da oposição alternam a vez na tribuna da Câmara dos Deputados para culpar Dilma pela crise económica do país, pelo desemprego, pela corrupção – apesar de o pedido de impeachment ter como base as chamadas “pedaladas fiscais” (adiantamentos de crédito feitos por bancos estatais para financiar obrigações e programas do Governo) e reforços orçamentais realizados sem autorização do Congresso. “É uma infelicidade pela segunda vez em pouco tempo a gente estar a afastar um Presidente. Mas perder a base política do jeito que a Presidente perdeu é muito difícil manter o mandato”, diz o sociólogo Brasílio Sallum Jr., autor de um livro sobre o impeachment de Fernando Collor de Mello, em 1992.

Mesmo que a votação da Câmara dos Deputados seja favorável a Dilma, por uma pequena margem, ela continuará a ter uma larga maioria contra ela no Congresso. A radicalização do seu discurso – “nós somos democratas, eles são golpistas” – entusiasmou muito a militância do PT, mas afastou a possibilidade de recompor relações com a oposição. “Foi uma carta muito boa para manter a base social, mas não é uma boa política para uma Presidente”, diz. “Claro que se ela ganhar, a instabilidade continuaria. Seria um governo que nos levaria a mais dois anos sem muita direcção.”

Mas Michael Mohallem, professor na faculdade de direito da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, e ex-assessor parlamentar da liderança do Governo no Senado, acredita que é possível que os partidos que na última saíram da base aliada de Dilma possam voltar, caso ela consiga uma votação favorável. “Partidos como o PP [Partido Progressista] – o quarto maior da Câmara, sem uma lógica ideológica, cujas alianças se constroem numa base mais pragmática – teriam tendência a voltar. Alguns não saíram de modo definitivo do Governo. Por exemplo, não vão impor disciplina de voto aos seus membros”, diz.

O que não quer dizer que Dilma não terá outros desafios pela frente. Para Mohallem, caso o actual processo seja derrotado, o cenário mais provável é o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, aceitar um novo pedido de impeachment. “O da Ordem dos Advogados Brasileiros é o mais notório deles, e apresenta factos diferentes do pedido actual, incluindo a nomeação do ex-Presidente Lula da Silva para ministro, apontado como um crime de responsabilidade”, antecipa o cientista político.

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