Golpe ou tarefa patriótica? No Congresso brasileiro, o embate entre duas visões do impeachment

As contas dos jornais mostram claramente que a câmara já tem os votos suficientes para aprovar o processo de destituição da Presidente Dilma Rousseff.

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Parlamentares divididos entre o apoio e a recusa do impeachment Evaristo Sá/AFP

“Isso é golpe!”, gritou o advogado de Dilma Rousseff sexta-feira de manhã no plenário da Câmara dos Deputados, desencadeando aplausos e vaias entre os parlamentares que se concentravam, de pé, junto à tribuna no começo da discussão sobre o processo de impeachment (destituição) da Presidente brasileira. Atrás do Advogado Geral da União – nome que se dá no Brasil ao procurador-geral do Estado que representa o Governo na justiça –, de frente para as câmaras de televisão que captavam o momento em directo, deputados erguiam cartazes onde se lia “Impeachment sem crime é golpe” e com imagens da Constituição brasileira rasgada.

Nas vésperas da votação que terá lugar este domingo na Câmara dos Deputados, avolumam-se os indícios de que a Presidente Dilma Rousseff caminha para uma derrota. Os três principais jornais brasileiros – O Globo, Folha e Estado de S. Paulo – garantiam esta sexta-feira que já existem votos suficientes para aprovar o impeachment, depois de sondar as intenções de voto dos deputados. O mínimo necessário são dois terços da Câmara, ou 342 votos.

A Presidente preparava-se para defender o seu mandato num discurso ao país, pré-gravado, em que declarava que “há um golpe em curso no país”, segundo a imprensa. Porém, por recomendação da Advocacia-Geral da União, o discurso foi cancelado para evitar eventuais “problemas jurídicos”.

O arranque do debate sobre o impeachment de Dilma na Câmara dos Deputados, que começou manhã cedo, foi um embate entre duas visões: a de que o impeachment é um golpe de uma oposição que quer tomar o poder ilegitimamente, afastando uma chefe de governo eleita por voto popular, e, por outro lado, a de que o impeachment é “uma tarefa patriótica”, como afirmou o deputado Pauderney Avelino, do partido de direita Democratas (DEM). Os deputados alternaram a sua vez aos microfones para defender o impeachment ou a Presidente.

Num tom exaltado, o advogado-geral da União José Eduardo Cardozo declarou que, ao contrário de vários políticos que são alvo de investigação criminal ou foram incriminados, a Presidente brasileira “não tem absolutamente nenhuma acusação”, nem está a ser investigada. Sessenta por cento dos 513 membros da Câmara dos Deputados, que irão votar este domingo no processo de impeachment, são alvo de processos judiciais ou estão a ser investigados por crimes que vão desde lavagem de dinheiro e fraude eleitoral a tortura e exploração de trabalho escravo.

“Um país que tem uma corrupção histórica e estrutural, que tem a operação Lava Jato investigando, que tem várias pessoas que estão sendo acusadas e investigadas, terá uma Presidente da República afastada sem nenhuma imputação grave”, disse o procurador, sublinhando que Dilma está a ser punida por práticas orçamentais que outros Governos anteriores também realizaram e que foram autorizadas pelo Tribunal de Contas. Cardozo pediu que os parlamentares votem pela rejeição do processo de impeachment, notando que “a História jamais perdoará aqueles que romperam com a democracia criada em 1988”.

O jurista Miguel Reale Jr., um dos três autores do pedido de impeachment que está a ser analisado, foi o primeiro a falar no plenário da Câmara dos Deputados, onde afirmou que Dilma é que deu um golpe ao “mascarar” o défice das finanças públicas para se reeleger em 2014. “Golpe houve quando se sonegou a revelação de que o país estava quebrado. Golpe, sim, houve quando se mascarou a situação fiscal do país. Continuaram a fazer imensos gastos públicos e tiveram que se valer de empréstimos de entidades financeiras controladas pelo Estado, para mascarar a situação do Tesouro Nacional”, afirmou.

“Qual é o crime mais grave, o de um Presidente que põe no seu bolso uma determinada quantia ou de uma Presidente que, pela ganância pelo poder, não vê limites para destruir a economia brasileira?", perguntou o jurista. Mas ele tinha uma resposta: “Furtar um bocado de dinheiro é muito menos do que furtar a esperança de futuro”, disse, enquanto atrás de si, deputados seguravam cartazes que diziam “Tchau, querida”, numa referência a Dilma.

Enquanto Miguel Reale Jr. discursava, deputados do lado da oposição, do estado de Rio Grande do Sul, comemoravam bebendo chimarrão, uma bebida típica do sul feita à base de erva-mate. Num tom irónico, anunciaram que iam oferecer ao PT o “chimarrão do impeachment”.

Durante as suas intervenções, os parlamentares de esquerda apoiantes do Governo acusaram o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha – que comandava a sessão, sentado na mesa do plenário – de ter accionado o processo de impeachment em retaliação contra Dilma e por motivos pessoais.

Um deputado do PSB (Partido Socialista Brasileiro), Paulo Foletto, fez dez segundos de silêncio, antes de declarar: “Esse é o silêncio que hoje acontece na economia nacional, caminhando para a morte. Paragem respiratória.” Outro deputado, Leonardo Picciani, do PMDB, o maior partido no Congresso, que no mês passado saiu da coligação do Governo, anunciou que 90% da sua bancada iria votar a favor do impeachment, mas ele não. “Sou de uma geração que não viveu o arbítrio da ditadura. Sou de uma geração, também, que acompanhou ainda na infância o processo de impeachment do ex-Presidente Fernando Collor de Mello. Não imaginava que a minha geração viesse a viver novamente um momento como esse”, disse Picciani, 36 anos. “Esse é um momento de extrema gravidade da vida nacional. Não é motivo de comemoração para ninguém.”

Depois de uma semana marcada pela aprovação do impeachment numa comissão parlamentar e pela subsequente fuga de apoio de vários partidos da sua base aliada, na quinta-feira Dilma sofreu nova derrota no Supremo Tribunal Federal, ao ver rejeitada a providência cautelar apresentada pela sua defesa para anular o processo. Cardozo argumentou que o direito de defesa de Dilma foi comprometido e que o relatório aprovado na comissão parlamentar especial na segunda-feira, recomendando a continuidade do processo, contém irregularidades. Mas, numa sessão convocada de emergência que se prolongou pelo começo da madrugada de sexta, a maioria dos juízes do Supremo – oito contra dois – indeferiu o recurso da Advocacia Geral da União, bem como o pedido de dois deputados do partido do governo, o PT (Partido dos Trabalhadores), para suspender a votação deste domingo.

O Supremo Tribunal Federal também validou a ordem de votação definida pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha: no domingo, a votação irá alternar entre bancadas estaduais, começando por um estado do Norte e seguido por um do Sul e assim sucessivamente. Originalmente, Cunha decidira começar a votação pelos estados do Sul, mais contrários à Presidente, e deixar o Norte e Nordeste para último. A ideia era criar um movimento crescente a favor do impeachment que influenciasse a votação e inibisse os parlamentares mais indecisos de votar contra. Mas Cunha voltou atrás na sua decisão, anunciando pouco antes da sessão do Supremo que iria começar a chamada pelo Norte.

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