Colégio Militar proíbe “manifestações de afectos” que comprometam “ambiente pedagógico saudável”

No regulamento anterior quase não falava de afectos, mas tudo mudou a partir do momento em que o colégio passou a acolher raparigas.

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Normas regulamentares de comportamento ou discriminação? Rui Gaudêncio

No Regulamento Interno-Guia do Aluno do Colégio Militar, aprovado após a instituição ter passado a acolher raparigas, considera-se uma infracção disciplinar “muito grave” “a manifestação de afectos que possam comprometer os princípios inerentes a um ambiente pedagógico saudável”, estando na mesma categoria do roubo ou da posse ou consumo de droga. À luz da polémica recente, especialistas na área da saúde mental contactos pelo PÚBLICO consideram a expressão “ambígua”, podendo deixar “a porta aberta” a comportamentos discriminatórios.

A polémica estalou com uma reportagem publicada pelo jornal online Observador, onde o subdirector do Colégio Militar, tenente-coronel António Grilo, afirmou: "Nas situações de afectos [homossexuais], obviamente não podemos fazer transferência de escola. Falamos com o encarregado de educação para que perceba que o filho acabou de perder espaço de convivência interna e a partir daí vai ter grandes dificuldades de relacionamento com os pares. Porque é o que se verifica. São excluídos." O General Carlos Jerónimo, chefe do Estado-Maior do Exército (CEME), pediu a demissão na sequência das afirmações.

No regulamento anterior quase não se falava de afectos. Numa nota dirigida aos alunos do 1.º ciclo do ensino básico dizia-se apenas "também contigo temos a aprender que a vida é construída por pequenos e grandes afectos, em múltiplas atitudes, movidas pela ingenuidade contagiante da tua idade."

Nas normas que regulam o comportamento dos alunos desta instituição, homologadas em Setembro de 2015 e completamente revistas depois de o colégio ter passado a acolher raparigas após mais de 200 anos como instituição exclusivamente masculina, passa-se a prever, entre “os deveres específicos do aluno” que, “além da normal convivência, solidariedade e camaradagem”, não se pode “praticar ou adoptar qualquer comportamento, atitude ou manifestação de relacionamento afectivo dentro do colégio, ou no exterior, quando fardado, que possa comprometer os princípios inerentes a um ambiente pedagógico saudável”.

Neste contexto, “as manifestações de afecto” surgem então na tipologia das infracções disciplinares “muito graves”. Em termos genéricos, o documento inclui, entre as “medidas disciplinares correctivas”, a advertência, a ordem de saída da sala de aula, a realização de tarefas e o condicionamento no acesso a certos espaços do colégio. Já as “medidas disciplinares sancionatórias” prevêem a repreensão, a suspensão e a transferência de escola.

Para interpretar o regulamento, José Morgado, o professor do ISPA- Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida, onde é membro do Centro de Investigação em Educação, diz que é preciso ter em conta o contexto. Tratando-se “de uma instituição mais fechada, com uma cultura mais fechada, é normal que sejam mais rígidos”, notando que “também há famílias com estilos educativos que também não são favoráveis a manifestações de afectos.”

Mas prescrever "a inibição de comportamentos de afecto" em ligação com “ambiente pedagógico saudável parece-me pouco sustentado”. O docente diz que na expressão “há uma grande elasticidade” e “ambiguidade” que coloca várias dúvidas (“a quem cabe avaliar esta adequação?”) e deixa “a porta aberta” “ao discricionário” e “ao livre arbítrio”. Nota ainda que uma instituição desta natureza será “provavelmente menos escrutinada do que uma escola pública”, podendo adivinhar-se, com base nas declarações, que “já terá havido jovens convidados a sair” com base na homossexualidade.

O pedopsiquiatra Mário Cordeiro considera a frase relativa à "infracção muito grave" como "descabida e muito dúbia”: “o que é 'um ambiente pedagógico saudável'? Manifestar afectos não é saudável? Escondê-los, expressá-los clandestinamente será mais pedagógico?” O médico diz que fica “perplexo com este tipo de rigidez e o que as suas entrelinhas podem significar. Assusta-me o sofrimento em que muitas crianças e adolescentes possam estar durante anos e anos.”

Mário Cordeiro admite que o subdirector tenha querido dizer que “os alunos homossexuais poderiam ter problemas acrescidos.” Mas, ao invés de ajudar à exclusão, o que a instituição deveria fazer seria pensar em “que medidas tencionava adoptar para que essa discriminação deixasse de existir: desde alterar regulamentos, a acções pedagógicas com as outras crianças e com os profissionais do colégio.” E vai mais longe: “Creio que esse regulamento - e a consecutiva prática e cumprimento - ferem a Constituição da República, o que será tanto mais grave numa instituição que está directamente ligada a uma estrutura do Estado.”

Margarida Gaspar de Matos, psicóloga e investigadora da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, comenta que “o senhor tenente-coronel tenta ser diplomático mas perde uma oportunidade de se abrir ao século XXI". Isto, porque a ciência provou que "a estigmatização social pelos 'outros' pode levar a situações de bullying, de xenofobia, de discriminação e exclusão social que podem vir a ter consequências muito graves no equilíbrio psicossocial das pessoas."

A docente remete também para a Constituição, notando que, “qualquer instituição que identifique situações que possam eventualmente dificultar a vida e bem estar de pessoas por questões de ‘desvios’ de alegadas normas sociais, deveria, de imediato, proceder a um amplo debate de ideais sobre a ‘a génese do preconceito, da xenofobia e da exclusão social’”. A psicóloga, que é autora de vários estudos sobre a saúde na adolescência, acrescenta que deveria ser procurado junto dos alunos “formas de ajudar a instituição a crescer e a conseguir ser inclusiva. E não proceder à remoção dos alunos com um discurso ‘mais ou menos almofadado’".

A investigadora ressalva que é legítimo que as instituições "tenham regras internas do que é público e privado e podem ter regulamentos a conter a expressão de qualquer afecto (homo, hétero e bi)”. Afirma que pode ser “uma opção de cada instituição não permitir o contacto físico entre alunos. Há países onde as pessoas não se podem tocar em público, haverá instituições em Portugal onde isso também ocorra”. Mas, sublinha, “a desigualdade com base na homopreferência não tem outra justificação que não o preconceito.”

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