Ninguém dormiu em Brooklyn com os gritos de Bernie Sanders e Hillary Clinton

Os dois candidatos do Partido Democrata calçaram as luvas de boxe e fizeram do debate em Nova Iorque um verdadeiro combate pela nomeação.

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O moderador pediu aos candidatos que não se atropelassem a falar Lucas Jackson/Reuters

Longe vão os tempos em que um discreto senador do pequeno estado do Vermont explicava as suas ideias progressistas para o futuro dos Estados Unidos sem entrar em discussões acesas com uma célebre ex-secretária de Estado e antiga senadora do poderoso estado de Nova Iorque. Mas na noite de quinta-feira, três meses depois do primeiro debate entre os candidatos do Partido Democrata que lutam por um lugar na corrida à Casa Branca, Bernie Sanders e Hillary Clinton calçaram as luvas de boxe e ofereceram à assistência um combate épico em Brooklyn, o bairro da cidade de Nova Iorque onde ele nasceu e onde ela abriu a sua sede de campanha.

Foram duas horas de debate com momentos em que o moderador teve de intervir para dizer aquelas coisas que costumamos ouvir nos programas em que adeptos relativamente conhecidos discutem foras-de-jogo e outras decisões polémicas da arbitragem no campeonato de futebol português. "Se continuarem a gritar um com o outro, os espectadores não vão conseguir ouvir nem um, nem outro. Por isso, façam o favor de não falarem um por cima do outro", advertiu o moderador da CNN, o jornalista Wolf Blitzer.

A pressão entre os dois únicos candidatos à nomeação pelo Partido Democrata tem subido nas últimas semanas, e a tampa de ambos saltou finalmente esta quinta-feira – cansados de meses de uma campanha mais dura do que se antecipava há um ano, e a poucos dias das importantes primárias em Nova Iorque, Sanders e Clinton foram directos à jugular um do outro, e não a largaram até ao fim do debate.

No final, e em resposta a quem não vive sem uma narrativa de vencedores e vencidos, Hillary Clinton saiu do ringue com um pouco mais de fôlego do que Bernie Sanders – na verdade, no jogo que realmente interessa (a nomeação pelo Partido Democrata) ambos saíram praticamente da mesma forma que entraram: quem se alistou na revolução contra os abusos de Wall Street prometida por Sanders não encontrou qualquer razão para se derreter com os argumentos da sua adversária; e quem apoia a visão mais pragmática e gradual de Clinton não viu grandes motivos para mudar de carruagem quando o comboio vai entrar na fase decisiva da longa viagem até ao fim das primárias.

No geral, nem Sanders nem Clinton disseram nada que não tenham repetido vezes sem conta nas últimas semanas, mas a impaciência, a amargura e até a fúria que usaram para dar forma às mesmas frases foram uma novidade que levou a assistência ao delírio – dividida entre fervorosos apoiantes do senador do Vermont e da antiga secretária de Estado, por vezes parecia que os seus gritos, aplausos e vaias eram accionados por um técnico particularmente inábil, que costuma carregar no botão dos risos enlatados em programa humorísticos sem grande noção de timing.

Reviver o passado no Iraque e em Wall Street

Um dos momentos em que Bernie Sanders sentiu mais dificuldades foi quando foi confrontado com a declaração de que considera Hillary Clinton uma pessoa sem qualificações para a função de Presidente dos EUA – uma acusação feita num discurso em Filadélfia, na semana passada, em resposta a uma acusação semelhante lançada por Clinton contra o senador do Vermont.

Na resposta, Sanders recuou um pouco na ideia de que faltam qualificações a Clinton, mas repetiu a acusação de que lhe falta capacidade de discernimento. "A secretária [de Estado] Clinton tem experiência e inteligência para ser Presidente? Claro que tem, mas eu questiono a capacidade de discernimento dela. Questiono o discernimento que a levou a votar a favor da guerra no Iraque", disse o candidato, numa referência a um dos assuntos que mais os tem distanciado nesta campanha em termos de política externa – Hillary Clinton reconheceu que, se soubesse o que sabe hoje, não teria votado a favor da guerra no Iraque, mas Bernie Sanders foi um dos políticos norte-americanos que mais se opôs à intervenção militar em 2002 e à invasão em 2003 (e também se opôs à intervenção militar de 1991, propondo em troca a imposição de sanções).

Clinton, que foi perdendo a pose de favorita incontestada à medida que Sanders se foi mantendo na corrida muito mais tempo do que inicialmente esperava, foi directa à questão da suposta falta de qualificações e de capacidade de discernimento.

"Bem, é verdade que foram feitas algumas declarações, agora que os holofotes estão apontados para Nova Iorque, e a verdade é que o senador Sanders disse que eu não sou uma pessoa qualificada. Já me chamaram muitas coisas na vida, mas esta foi a primeira. Depois, disse que não confiava na minha capacidade de discernimento. Bem, os cidadãos de Nova Iorque votaram em mim duas vezes para ser a sua senadora, e o Presidente Obama confiou na minha capacidade de discernimento para me nomear secretária de Estado dos Estados Unidos", respondeu Clinton, aproveitando para se colar à grande popularidade que o actual Presidente mantém entre os eleitores do Partido Democrata.

Mas se há uma questão de que Hillary Clinton não consegue livrar-se é a da ideia de que também se colou durante muito tempo aos grandes banqueiros de Wall Street – o que, argumenta Bernie Sanders, a desqualifica como a candidata ideal para pôr ordem no sistema financeiro.

Tal como tem feito em muitas outras ocasiões, Sanders voltou a carregar na ferida dos discursos que Clinton fez em empresas como a Goldman Sachs ou a Morgan Stanley, e pelos quais recebeu quase três milhões de dólares entre 2013 e 2015. A questão não é tanto que os tenha feito, mas mais o facto de continuar a não querer revelar as transcrições desses discursos – no debate de quinta-feira, a candidata insistiu que só revelará o conteúdo dos discursos se os candidatos do Partido Republicano também o fizerem.

Numa tentativa de encostar Bernie Sanders a uma parede semelhante, Hillary Clinton perguntou ao senador onde andam as suas declarações de impostos – o candidato prometeu divulgar a declaração de 2014 ainda esta sexta-feira e as mais antigas nos próximos dias e semanas. "Não recebi dinheiro de discursos, não tenho grandes investimentos. Infelizmente continuo a ser um dos membros mais pobres do Senado dos Estados Unidos", disse o senador do Vermont.

O problema de Sanders

Como seria de esperar, os candidatos trocaram ataques sobre as suas posições em vários temas, desde o aumento do salário mínimo nos EUA ao conflito israelo-palestiniano. Mas nesta fase da corrida, e com as primárias de Nova Iorque ao virar da esquina, Bernie Sanders precisa de operar uma das mais estonteantes reviravoltas da história moderna da política norte-americana para impedir a nomeação de Hillary Clinton.

Na próxima terça-feira vão estar em causa 247 delegados nas primárias de Nova Iorque, um estado cujo eleitorado é mais favorável a Clinton. Enquanto muitas das mediáticas vitórias de Sanders têm sido alcançadas em caucus (assembleias) e não em primárias, em estados de menor dimensão e com uma base eleitoral maioritariamente branca e jovem; Clinton tem vencido em estados maiores, com mais delegados em jogo, e em primárias – um sistema que exige menos activismo por parte dos eleitores porque, ao contrário dos caucus, não os obriga a manter longas discussões e a organizar demoradas votações no final de um dia de trabalho.

O que é o caucus?

Segundo a média das sondagens mais importantes, Clinton tem 13,8 pontos percentuais de vantagem sobre Sanders em Nova Iorque, mas o que dificulta ainda mais o caminho do senador até à nomeação é a forma proporcional como o Partido Democrata distribui os seus delegados pelos dois candidatos – para conseguir apanhar Clinton na contagem dos delegados, Sanders precisa de vencer estados como Nova Iorque por uma margem abissal, porque quem perde por poucos consegue, ainda assim, meter ao bolso muitos delegados. 

Até agora, Hillary Clinton conquistou 1289 delegados e Bernie Sanders 1038. Para conquistar o direito a ser a face do Partido Democrata na corrida à Casa Branca, um deles tem de garantir pelo menos 2383 delegados – uma tarefa aparentemente mais fácil para Clinton, que soma à vantagem que já tem a perspectiva de vitórias (segundo as sondagens) em estados como Nova Iorque (247 delegados), Pensilvânia (189 delegados) e Califórnia (475 delegados). E ainda tem a almofada dos superdelegados, mais de 700 pessoas ligadas às estruturas do Partido Democrata que vão à convenção votar em quem entedenderem – segundo o balanço feito pela Associated Press, Clinton tem até agora 469 superdelegados do seu lado e Sanders apenas 31.  

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