Peruanos decidem nas urnas se enterram ou ressuscitam o fujimorismo

Apesar dos escândalos e reviravoltas da campanha, a filha do ex-ditador, Keiko Fujimori, manteve-se sempre na liderança das sondagens. Conseguirá ultrapassar as resistências ao legado negro do pai?

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A herança de Alberto Fujimori gera amor e ódio em doses equivalentes Mariana Bazo/Reuters

A líder do partido Força Popular, Keiko Fujimori, favorita à vitória em todas as sondagens sobre a intenção de voto nas eleições presidenciais do Peru, só viu a validade da sua candidatura definitivamente confirmada pelo Júri Nacional de Eleições a oito dias do escrutínio. Antes, dois outros candidatos ao cargo – um dos quais o que mais ameaçava o favoritismo de Fujimori – foram desqualificados da corrida após meses de campanha, numa decisão inédita e polémica da autoridade eleitoral que motivou um apelo da Organização dos Estados Americanos: “As eleições correm o risco de se tornarem apenas parcialmente democráticas”, alertou a organização pan-americana sediada em Washington.

A impugnação da candidatura de Keiko Fujimori, filha do antigo Presidente (e ditador) Alberto Fujimori, que se encontra a cumprir uma pena de 25 anos anos de prisão por corrupção e violações dos direitos humanos, foi pedida por suspeita compra de votos: vídeos divulgados mostravam a candidata a entregar envelopes com dinheiro e também electrodomésticos numa acção da juventude do seu partido, ao arrepio dos novos regulamentos, aprovados em Janeiro, que proíbem presentes de campanha e prevêem a exclusão dos prevaricadores. Mas Fujimori disse que estava apenas a participar numa distribuição de prémios de uma embola que não fora organizada pela sua campanha, e que essa actividade não fazia parte da campanha eleitoral.

Depois de ultrapassar esse obstáculo, a campanha “fujimorista” sofreu um novo abalo com a revelação dos Panama Papers, que identificaram como detentor de offshores criadas pela empresa Mossack Fonseca nas Ilhas Virgens Americanas um dos seus maiores financiadores e apoiantes, Jorge Yoshiyama Sasaki. O tio de Jorge, Jaime, foi ministro de Alberto Fujimori e chefe da campanha (fracassada) da filha em 2011: as suas declarações à justiça eleitoral mostram que os dois contribuíram com mais de 120 mil dólares para a candidatura presidencial.

E dias antes da votação, mais de 50 mil pessoas participaram na marcha “Keiko no va”, que se estendeu por quase três quilómetros de avenidas no centro da capital, Lima. Não foi a primeira vez que os críticos de Fujimori se mobilizaram na rua contra a sua candidatura, mas segundo a imprensa nacional, foi a marcha mais participada de sempre: além dos universitários e intelectuais que costumam dinamizar os protestos anti-Keiko, marcaram presença muitos trabalhadores, reformados e idosos.

Um fenómeno sem ideologia

Com uma campanha rica em vicissitudes e reviravoltas, que alimentaram todas as desconfianças e extremaram a polarização no país, as presidenciais peruanas – a primeira volta decorre este domingo, e se nenhum dos dez candidatos alcançar 50% dos votos válidos haverá uma votação decisiva a 5 de Junho – converteram-se no grande teste à capacidade de atracção e resistência do chamado “Fujimorismo”, mais um fenómeno do que uma doutrina política, inventado por Alberto Fujimori: sem uma ideologia precisa, é um movimento conservador tradicionalista no que diz respeito aos costumes, pragmático e liberal na condução da economia, populista e autoritário na relação com o povo e as instituições.

Essa ainda é a maior dificuldade para a candidata da Forza Popular, que tem feito o possível por se demarcar da pesada herança política que carrega por força do apelido, que gera amor e ódio veemente em doses equivalentes. São os dois extremos da escala social, os mais ricos e os mais pobres, que recordam o “Fujimorismo” com uma certa nostalgia – quer por causa da sua gestão económica, que pôs fim à dura crise que atingiu o país na década de 1980, quer pelo seu combate aos grupos terroristas. Menos saudoso, um grupo ecléctico que integra jovens universitários e, intelectuais, esconjura a memória dos abusos de todo o tipo ocorridos durante os governos de Alberto Fujimori (1990-2000): censura, sequestros, massacres, esterilizações forçadas, corrupção e impunidade.

Keiko Fujimori multiplicou-se em garantias – sob a forma de “compromissos de honra” assinados e registados – de respeito pela ordem constitucional, os direitos humanos e a liberdade de imprensa, além de promessas de que saberá separar os poderes e jamais tentará utilizar o cargo para beneficiar a família. “Sei olhar para a História do meu país, e distinguir entre os capítulos que se devem repetir e os que não”, afirmou.

“Comigo jamais acontecerá outro 5 de Abril”, prometeu no derradeiro debate presidencial televisivo com os dez candidatos, referindo-se ao auto-golpe do seu pai, que em 1992 dissolveu o Congresso e os tribunais, e diluiu a democracia, instaurando um regime de excepção em nome da luta aos grupos guerrilheiros como o Sendero Luminoso e o Movimento Revolucionário Túpac Amaru. O auto-golpe, que inicialmente contou com o apoio de 82% da população, promoveu uma cultura de corrupção e autoritarismo que atingiu o pico em 2000: Alberto Fujimori fugiu do país e a partir do Japão tentou renunciar à presidência por fax. O Congresso não aceitou e destituiu o Presidente – pondo fim a oito anos de governo autocrático.

Como notou à BBC Mundo Michael Shifter, o director do centro de análise política Diálogo Inter-Americano, sediado em Washington, Keiko revelou “alguma habilidade política na construção da sua base de apoio”, nomeadamente entre os que se sentem mais afectados pelo sentimento de insegurança, mas não foi capaz de vencer as resistências dos sectores da sociedade que encontram na administração do seu pai falhas mais graves do que meros “equívocos” ou “erros”, conforme a descrição da própria. “Crimes não são erros, não é assim tão simples limpar a imagem”, considera o peruano Carlos Manuel Indacochea, da Universidade George Washington dos Estados Unidos, à BBC Mundo.

Réplica do pai

Keiko representa uma nova geração, mas não afastou a velha guarda. “Grande parte da sua equipa era a equipa do seu pai”, assinala Shifter. Perante a barrela de ataques, a candidata revelou grande disciplina – e uma couraça intransponível. “Todos têm direito a exprimir as suas opiniões”, respondeu aos críticos que a acusavam de ser uma réplica do pai. “Ainda bem que foram pacíficos”, comentou, a propósito dos protestos contra a sua eleição.

Apesar de estar na mira de fogo de todos os outros concorrentes, Keiko Fujimoro conseguiu manter a sua base eleitoral praticamente constante, tendo garantido o apoio de um terço do eleitorado. As últimas sondagens, que por lei são publicadas uma semana antes da votação, dão-lhe 33% das intenções de voto, sensivelmente o dobro dos dois adversários que lutam pelo direito a disputar a segunda volta. Aí, a incógnita para já é saber se a agregação dos votos anti-Keiko é suficiente para lhe negar a vitória.

Os números mostravam ainda que quase 40% dos eleitores (um universo que abarca quase 23 milhões de pessoas) ainda estavam indecisos ou admitiam a hipótese de trocar o seu apoio no último dia ou mesmo últimas horas antes da votação. “Mudo de ideias a cada meia hora”, disse à Reuters Felix Castillo, de 39 anos, que confessava não ter sido capaz de escolher um preferido entre os dez candidatos. Diego Cano, um engenheiro de 23 anos, tinha as mesmas dúvidas, mas uma certeza: “A única coisa que sei é que vou votar contra Keiko na segunda volta”.

Com a polémica exclusão da candidatura do economista Julio Guzmán um mês antes da eleição, a luta pelo segundo lugar na corrida ganhou um novo interesse.

A disputa é entre o ex primeiro-ministro, Pedro Pablo Kuczynski (ou PPK), líder do movimento Peruanos Pela Mudança, centrista, e a deputada Veronika Mendoza, que representa a região de Cusco e encabeça a coligação de esquerda Frente Ampla pela Justiça, Vida e Liberdade. Nos últimos inquéritos, surgiam virtualmente empatados (na recta final da campanha, o candidato da social-democrata Acção Popular, Alfredo Barnechea, ficou para trás).

A passagem do conservador PPK à segunda volta, que parecia quase certa, está agora “ameaçada” pela ascensão nas sondagens da candidatura de Verónika Mendoza, de 35 anos, que promete uma “mudança radical” das políticas económicas liberais do país: o seu manifesto eleitoral assenta na substituição do modelo assente na venda de commodities, em particular cobre. “O Peru não devia ser um mero armazém de pedras e matérias-primas”, considera, propondo diminuir a dependência da actividade dos grandes conglomerados petrolíferos e mineiros internacionais, cujas práticas ambientais lhe merecem as maiores críticas. Além disso, defende a revisão dos tratados de livre comércio e a reforma do sistema de segurança social.

Mendoza é a única candidata com hipóteses eleitorais que não foi beliscada pela divulgação dos Panama Papers. Tal como aconteceu com Fujimori, o escândalo das empresas offshore em paraísos fiscais provocou mossa na campanha do economista e antigo responsável pela pasta das Finanças, Pedro Pablo Kuczynski, que foi pessoalmente implicado como detentor de contas em offshores.

O confronto entre Fujimori e Kuczynski é uma espécie de reedição da luta eleitoral de 2011: nessa altura, os dois disputavam a passagem à segunda volta contra o nacionalista de esquerda Ollanta Humala, que agora abandona a presidência com uma astronómica taxa de reprovação de 83%. A base governista não nomeou um sucessor para o antigo militar indígena, e o Presidente absteve-se de manifestar o seu apoio a qualquer candidato.

Repercussões regionais

Uma eventual vitória da Força Popular de Fujimori desequilibrará o fiel da balança para a direita e confirmará a nova tendência política em crescimento na América Latina, que passa pela substituição – democrática e pacífica – de líderes populistas de esquerda por chefes de Estado liberais. No entanto, o cenário que no início do ano parecia improvável, de uma vitória da esquerda, não pode ser totalmente descartado, lembrou o professor da Universidade Católica Martín Tanaka, um dos analistas políticos mais destacados do Peru. “Na policia peruana, tudo são cambalhotas, as coisas mais imprevistas podem acontecer”, referiu, em entrevista ao El País.

Tanaka explica que nas últimas décadas, o Governo de Lima distinguiu-se dos seus vizinhos continentais mantendo-se imune ao fortalecimento dos partidos de esquerda que conduziu ao poder líderes como Cristina Kirchner, Evo Morales, Lula da Silva ou Rafael Correa. “A região experimentou uma guinada à esquerda, que ganhou eleições e assumiu o governo, ou então foi uma força de oposição muito relevante: o Peru chama a atenção porque esse fenómeno não ocorreu”, diz, considerando que nem mesmo a eleição de Humala em 2011 pode ser enquadrada nessa tendência esquerdista uma vez que “o seu governo desde muito cedo fez uma viragem ao centro e separou-se do círculo da esquerda”.

O actual Presidente, um antigo militar que se iniciou na policia como um nacionalista de esquerda ao estilo do antigo líder venezuelano Hugo Chávez, só foi eleito depois de trocar a sua retórica anti-capitalista por um discurso moderado, de defesa de políticas liberais ortodoxas como fórmula para a redução das desigualdades. Para Tanaka, isso é prova de que, apesar de o Peru ser um país tendencialmente conservador, existe um bloco de centro-esquerda com suficiente força eleitoral para projectar um vencedor.

Como explicam vários analistas, uma das consequências do Fujimorismo foi a destruição do antigo sistema de partidos tradicionais, que deram origem a movimentos variados que esfumam as identidades políticas e introduziram uma nova camada de incerteza nas contas eleitorais. Com a economia em desaceleração, mas ainda assim a crescer a uma taxa de quase 3% (que contrasta com os 0,7% agregados da América Latina), e a campanha centrada na discussão de personalidade e não na ideologia, não serão as questões económicas as mais determinantes na escolha política. Ainda assim, num país onde o crescimento não eliminou grandes bolsas de pobreza e profundas desigualdades, poderá haver uma tentação para a mudança de paradigma, de sentido contra-corrente com a região: a substituição de políticas liberais por um maior papel do Estado

Além do Presidente, os peruanos escolhem hoje uma nova legislatura, com 130 deputados.

 

 

 

 

 

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