Uma clara falta de sentido de Estado

As ameaças de João Soares não amedrontam. Mas quem não sabe ser ministro não lhe vista a pele.

Ontem, um estudante universitário de 26 anos que publicava mensagens no Facebook contra o islamismo foi assassinado na capital do Bangladesh. Um assassinato selectivo: barraram-no na rua, agrediram-no com catanas e, já no chão, mataram-no com um tiro. No mesmo dia, Portugal discutia ameaças publicadas por um ministro no Facebook (é por aqui que tudo passa, hoje em dia) contra críticas ao seu ministério e à forma como o gere. Ora o ministro em causa, João Soares, que tutela a Cultura, perante um texto onde o crítico Augusto M. Seabra tecia considerações políticas sobre a sua pessoa enquanto ministro, escreveu no seu Facebook pessoal isto: “Em 1999 prometi-lhe publicamente um par de bofetadas. Foi uma promessa que ainda não pude cumprir. (...) Ele tinha, então, bolçado sobre mim umas aleivosias e calúnias. Agora volta a bolçar, no "Publico". (...) Estou a ver que tenho de o procurar, a ele e já agora ao Vasco Pulido Valente, para as salutares bofetadas. Só lhes podem fazer bem. A mim também.” A palavra “bolçar” já denota só por si um estilo deplorável em quem tutela a Cultura, mesmo num desabafo momentâneo. Mas a ameaça das “salutares bofetadas”, mesmo que possam ser entendidas como figura literária e não como intenção de agredir, é completamente inadmissível num ministro em funções, em particular na área que tutela – e as críticas que lhe foram dirigidas situam-se estritamente nessa área. Ele não ameaçou, enquanto cidadão, um delinquente que lhe riscou o carro ou que lhe partiu os vidros de uma janela da sua casa; ameaçou um crítico e um cronista (lembrou-se de uma crónica de Vasco Pulido Valente a propósito do caso Lamas-CCB) que lhe fizeram acusações políticas, e por isso só pode tê-lo feito enquanto ministro, ainda que no seu Facebook pessoal. Aliás, João Soares mostra, com isto e com a forma como tem usado o Facebook após ter sido empossado no cargo, que ainda não percebeu que o “cidadão João Soares”, a partir do momento em que tutela a cultura e fala dela, não existe; existe, sim, o ministro João Soares: quando enaltece, critica, acusa ou ataca alguém da área cultural, é o ministro que o faz, não o cidadão João Soares. Da mesma maneira que, quando diz bem ou mal de um espectáculo ou de determinado autor, é o ministro que fala, ao assinar João Soares no Facebook. Talvez isto lhe custe a entender, mas no cargo de ministro não há espaço para um “Mr. Hyde” quando está o Dr. Jekyll no comando.

O PS também devia perceber isto, mas, nesta matéria, tem pés de barro. Há a célebre frase “quem se mete com o PS leva”, o próprio primeiro-ministro já teve problemas com jornalistas, e, em geral, há demasiada permissividade para com um trauliteirismo verbal que nada dignifica a política. Afastar João Soares do governo podia, por isso, trazer mais dissabores do que sossego a António Costa. Claro que não estamos no Bangladesh e este tipo de ameaças não amedronta ninguém. Por isso, João Soares escusava de vir dizer, como um adolescente apanhado em falta, “Peço desculpa se os assustei”. Mas o problema não é esse, é de sentido de Estado. Ninguém é obrigado a ser ministro. Mas quem não sabe ser ministro não lhe vista a pele. É isso que se exige, em democracia.

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