Uma das filhas de Liliana Melo vive “perigo emocional”, alerta instituição

Quase quatro anos depois, instituição que recebeu uma das filhas de Liliana Melo pede um desfecho com a “máxima urgência”. Julgamento terá de ser repetido. A mãe espera ver restabelecidos laços familiares.

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As crianças, separadas umas das outras e distribuídas por três instituições de acolhimento, só no ano passado passaram a poder receber visitas da mãe Rui Gaudêncio

Uma das instituições de acolhimento onde está a viver uma das filhas de Liliana Melo, a cabo-verdiana a quem, em Maio de 2012, o Tribunal de Sintra mandou retirar sete das suas dez crianças, vive uma situação de “perigo emocional”. A instituição decidiu recentemente “partilhar” com o Tribunal Constitucional (TC) a sua “séria preocupação” com a menina, agora com quatro anos. E apela a que, “com a máxima urgência, seja tomada uma decisão” sobre este caso.

“A ausência de uma decisão que permita integrar” a criança “rapidamente numa família, biológica ou outra, representa um sério risco para o seu desenvolvimento integral, bem como para o sucesso da sua integração em qualquer família no futuro”, diz. É o que se lê no acórdão do TC conhecido nesta terça-feira — um acórdão que obrigará a que o polémico caso de Liliana Melo e dos seus filhos seja de novo julgado.

Quando, em 2012, o Tribunal de Sintra decidiu colocar as crianças em instituições, tendo em vista uma futura adopção, a lei não exigia que em julgamentos deste tipo os progenitores tivessem que estar representados por um advogado. Hoje já exige. Mas o TC acaba de considerar que essa norma de não obrigação de representação por um advogado que estava em vigor em 2012 é inconstitucional.

Como Liliana Melo não estava na altura do julgamento representada por advogado, houve “violação do direito ao contraditório”, entende o TC. E quase quatro anos depois de os filhos lhe terem sido levados pela polícia (a mais nova tem hoje quatro anos e a mais velha vai fazer 12), em cumprimento da sentença de Sintra, Liliana e o companheiro, pai das crianças, terão direito a um novo julgamento, “agora com a garantia do pleno exercício dos direitos fundamentais”, explicam as advogadas Paula Penha Gonçalves e Maria Clotilde Almeida, que começaram a representar a família já após a retirada dos menores.

As duas advogadas manifestam ainda, em comunicado citado pela agência Lusa, a “firme determinação” de Liliana Melo “em ver restabelecidos de forma integral e imediata os laços familiares com os seus filhos menores”.

Estado estuda processo

Ao PÚBLICO, Maria Clotilde de Almeida lembra: “Temos uma família, houve um julgamento e temos o TC a dizer agora que esse julgamento não podia ter sido feito como foi feito”, o que, na sua opinião, põe em causa as medidas que dali resultaram.

O processo da cabo-verdiana que vive em Portugal há mais de duas décadas tem suscitado nos últimos anos um debate aceso, com decisões e recursos uns atrás dos outros — aliás, esta é a segunda vez que o TC é chamado a pronunciar-se. A primeira foi em Maio de 2013: Liliana, então já representada pelas duas advogadas, queria recorrer da decisão inicial do Tribunal de Sintra, mas o recurso não foi aceite por, alegadamente, ter sido apresentado fora do prazo; a defesa recorreu para o TC; este entendeu que sim, Liliana tinha direito a recorrer.

As crianças, separadas umas das outras e distribuídas por três instituições de acolhimento, só no ano passado passaram a poder receber visitas da mãe, na sequência de uma determinação do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) que considerava que tinha de haver um regime provisório, até que o processo chegasse ao fim.

Já este ano, em Fevereiro, o TEDH condenou Portugal por violação do artigo n.º 8 da convenção dos direitos humanos (“direito ao respeito pela vida privada e familiar”). Os juízes foram duros: consideraram que a institucionalização dos menores “não foi apropriada”, tendo em conta “a ausência de condutas violentas” na família; defenderam que houve um “falhanço dos serviços sociais em mitigar a privação material vivida pela senhora Soares de Melo, que tinha que criar um grande número de filhos quase sem ajuda”; disseram que houve igualmente uma violação da convenção quando “a decisão de colocação das crianças em instituições” teve em consideração o facto de Liliana Melo se ter recusado a fazer uma laqueação de trompas.

O Estado português ainda não decidiu se vai ou não recorrer da decisão do TEDH, que condenou o país a pagar 15 mil euros à mãe, por danos morais. Tem até 16 de Maio para o fazer. “O Estado vai agora analisar o acórdão do TC e as respectivas implicações para avaliar se existe fundamento para interpor recurso do acórdão proferido anteriormente pelo TEDH, tendo sempre em conta os interesses das crianças e aquela que é a situação actual da família”, disse o Ministério da Justiça, em resposta por escrito.

E agora, as crianças?

Em Maio de 2015, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) considerou que não tinha havido “qualquer ilegalidade na decisão” — primeiro de Sintra, depois do Tribunal da Relação — de entregar os menores para adopção. “Uma família biológica desestruturada, com pai ausente do quotidiano dos filhos e a mãe com um percurso de vida marcado por grande instabilidade afectiva, profissional e manifestamente negligente em relação aos cuidados devidos aos filhos de higiene, saúde, alimentação, habitacional e ao nível da educação” — foi assim que descreveu a situação da família Melo. As advogadas recorreram para o TC alegando várias nulidades.

O TC não se pronuncia — nem é essa a sua competência, como sublinhou ao PÚBLICO o constitucionalista Tiago Duarte — sobre se as crianças deviam ou não ter sido retiradas à família. Nem tão pouco sobre o alerta que a instituição de acolhimento lhe fez chegar já em Março deste ano sobre o “perigo emocional” de uma das menores.

No seu acórdão, “o TC limita-se a ver se as normas que estão nas leis estão conformes a Constituição”, explica Tiago Duarte, que nota que não conhece os detalhes do processo.

E o TC entendeu que a norma da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada em 1999, e que vigorava em 2012, ao estabelecer que em processos “em que esteja em causa a aplicação de medida de confiança a pessoa seleccionada para adopção ou a instituição com vista a futura adopção [...] não é obrigatória a constituição de advogado aos progenitores das crianças ou jovens”, é insconstitucional. Aliás, em resultado de outras decisões do TEDH, esta mesma lei foi alterada em 2015, prevendo agora que, “no debate judicial, é obrigatória a constituição de advogado” em casos semelhantes. “Estão em jogo direitos fundamentais tanto dos pais como dos filhos”, argumenta o TC.

E as crianças? Como ficam agora? Rui Alves Pereira, sócio da sociedade de advogados PLMJ e presidente da associação Voz das Crianças, acredita que será marcado novo julgamento rapidamente, porque “este é um caso urgente”.

Até lá, “o tribunal pode tomar uma decisão provisória e acelerar os contactos da mãe com as crianças, de forma a que estes aconteçam de forma mais intensa e frequente”. Ou pode mesmo determinar a reunificação provisória da família ou de parte dela, até que o novo julgamento aconteça. “Acho esta última hipótese, contudo, mais difícil, mas não conheço o caso, depende também da situação de cada criança.”

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