Em Molenbeek recrutadores actuam como "traficantes à porta da escola"

SMS foram enviados a jovens da comuna de Bruxelas incitando-os a juntarem-se ao "combate aos ocidentais". Habitantes e responsáveis locais dizem que pouco está a ser feito para travar recrutamento.

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Mais de metade da população de Molenbeek tem origem marroquina e o desemprego entre os mais novos abeira-se dos 60% Youssef Boudlal/Reuters

As mensagens chegaram domingo à noite, horas depois de hooligans ligados à extrema-direita terem irrompido numa manifestação espontânea de homenagem às vítimas dos atentados na capital belga. “Meu irmão, porque não te juntas a nós no combate aos ocidentais? Faz a escolha certa na tua vida”, lia-se no SMS enviado a jovens de Molenbeek, a comuna de Bruxelas de onde saiu um terço dos belgas que foram combater na Síria e que, desde os atentados de Novembro em Paris, se tornou símbolo do fracasso para prevenir e combater o alastramento do radicalismo na Europa.

“Esta gente está a tentar apoderar-se dos nossos jovens de um fôlego”, acusa Jamal Ikazban, deputado socialista no parlamento regional e conselheiro municipal em Molebeek, que denunciou o caso às autoridades federais, numa entrevista ao Guardian. O jornal britânico adianta que a mensagem foi enviada de um número pré-pago, que não se encontrará já activo, e é parte de um conjunto de mensagens no Facebook ou de emails enviados nos últimos dias a um número indeterminado de jovens – supostamente escolhidos entre as listas de contactos de novos recrutas do Estado Islâmico.

“Isto é como ter um grande traficante de droga à porta de uma escola. O sentimento é o mesmo”, denuncia Ikazban, dizendo que é urgente “tirar esta gente das ruas”. “Eles são predadores e os nossos jovens são as suas vítimas.”

Desradicalização: "Para cada pessoa há uma janela de oportunidade”

Uma semana depois dos atentados que mataram 35 pessoas e deixaram mais de 340 feridas na capital política da União Europeia, o grito de alerta pode encontrar pouco eco junto das autoridades (mais preocupadas em desmantelar o essencial da célula terrorista) ou da população belga, indignada ainda com a carnificina provocada por homens nascidos e criados no país. Mas quem conhece Molenbeek ou viu um jovem familiar ignorar todos os apelos à razão e partir para a Síria diz que, apesar das operações policiais anunciadas contra as redes de recrutamento, pouco tem sido feito para travar o assédio.

A mãe de dois rapazes que se juntaram às fileiras do Estado Islâmico contou Guardian que um deles recebeu 140 telefonemas do recrutador nos dez dias que antecederam a sua partida. Quando avisou a polícia de que o filho estava prestes a embarcar para a Turquia, os agentes nada fizeram. O mesmo diz Geraldine, mãe de um combatente que foi morto na Síria, que alarmada com as intenções do filho avisou a “célula de anti-radicalização” da polícia em Molenbeek, mas acabou por descobrir que a magistrada que lhe poderia ter retirado o passaporte recusou intervir alegando que ele era maior de idade.

Os nossos jovens “estão a ser expostos a algo parecido com um cancro metastizado”, alerta Jamal Zaria, imã de uma das mesquitas desta comuna, onde mais de metade da população tem origem marroquina, o desemprego entre os mais novos abeira-se dos 60% e o nível de criminalidade supera em muito a média nacional. Os recrutadores “percebem que há aqui um desespero que pode ser usado para doutrinar e recrutar estas pessoas”, lamenta Ikazban, confessando-se “muito zangado” com a incapacidade belga para estancar esta sangria.

A Bélgica é um país dividido que não sabe combater o terror no seu interior

Mas há dedos apontados também aos líderes da comunidade, a começar pelas mesquitas. Em Novembro, a emissora alemã Deutsche Welle escrevia que, em 1967, ao abrigo de um acordo que lhe garantiu petróleo a preços mais baixos, a Bélgica autorizou a Arábia Saudita a formar boa parte dos imãs que desde então pregam para as comunidades magrebinas.

“Os imãs aqui [na Europa] imitam os sauditas, estão empenhados em isolar os muçulmanos do resto da sociedade. Foram emitindo fatwas como as que dizem que dar a mão a uma mulher ou desejar Feliz Natal a um vizinho é haram [pecado]”, disse ao jornal El País Hocine Benabderrahmane, historiador e imã reformista de Bruxelas, lamentando que seja este o discurso “que a juventude muçulmana europeia tenha escutado” desde a infância. Responsável de um centro de reflexão islâmica, Benabderrahmane, de origem argelina, diz não ter dúvidas de que o salafismo, corrente que defende uma interpretação literal do Corão, se tornou dominante no país: “Todos os dias vejo jovens radicalizados que acreditam que só há uma versão do islão.”

Manifestação da extrema-direita
Um extremismo que alimenta outro, como bem demonstraram as centenas de radicais de direita que no domingo tomaram de assalto o centro de Bruxelas, interrompendo uma homenagem aos mortos nos atentados. A polícia dispersou-os com canhões de água, mas pouco depois começou a circular na Internet um apelo a uma manifestação no próximo sábado em Molenbeek, “verdadeiro viveiro de islamistas” para exigir a sua “expulsão da Europa”.

A concentração, marcada para a mesma praça onde vive a família dos irmãos Abdeslam, dois dos dez atacantes de Paris, foi convocada pela Geração Identitária, um movimento de extrema-direita que segundo a rádio belga RTBF defende a “Reconquista da Europa”. A burgomestre Françoise Schepmans disse não ter recebido qualquer pedido para a realização da manifestação, mas assegura que qualquer protesto do género será proibido. “Quando lutamos contra o extremismo, estamos a lutar contra todos os extremismos. Está fora de questão deixar loucos furiosos expressar-se”, afirmou, àquela rádio. Mas depois dos confrontos de domingo e com a extrema-direita a ganhar fôlego à custa do terrorismo, ninguém descarta a hipótese de incidentes violentos entre grupos locais e de hooligans.

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