E se a demonstração de poder do BCE é antes um sinal de desespero?

Esta é a dúvida dos mercados depois de o BCE ter ido mais longe do que o esperado nas medidas de combate à deflação. Mario Draghi usou todos os seus trunfos e o euro, surpreendentemente, voltou a subir.

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"O que é que teria acontecido, se não tivéssemos feito nada? Uma deflação desastrosa”, disse Draghi REUTERS/Kai Pfaffenbach

Pagar aos bancos para lhes emprestar dinheiro, acelerar a máquina de imprimir dinheiro em mais 20 mil milhões de euros ao mês, começar a comprar obrigações das empresas e descer as taxas de juro para novos mínimos históricos. O Banco Central Europeu (BCE) olhou para uma economia com uma retoma lenta e uma inflação negativa e decidiu lançar para os mercados praticamente tudo o que tinha, num pacote de estímulos monetários que foi muito mais longe do que aquilo que esperavam os analistas. O problema é que passadas poucas horas, e depois de uma reacção muito fria do mercado, a dúvida subsistia: aquilo a que se assistiu foi uma demonstração de poder do banco central ou apenas um sinal de desespero perante o fantasma da deflação?

A reunião do conselho de governadores do BCE desta quinta-feira vai ficar na história como mais um passo bastante significativo do BCE em direcção a terreno desconhecido.

As taxas de juro de referência do banco central, que já estavam em mínimos históricos, foram todas cortadas, numa tentativa de fazer o crédito correr para a economia. Como já se esperava, a taxa de juro de depósito – aquela que é aplicada nas reservas acumuladas pelas instituições financeiras no BCE - passou de -0,3% para -0,4%, aumentando o incentivo para que os bancos deixem de ter o seu dinheiro parado e o emprestem às empresas e famílias.

E, de forma mais surpreendente, a principal taxa de juro de refinanciamento – aquela a que as instituições financeiras pedem dinheiro emprestado ao BCE – desceu dos 0,05% em que se encontravam para zero. Assim, nas suas operações regulares, um banco passa a poder, desde que apresente garantias adequadas, pedir ao BCE dinheiro emprestado sem ter de pagar juros.

Mas o BCE não se ficou por aqui e decidiu mesmo avançar para o passo inédito de pagar juros aos bancos para lhes emprestar dinheiro. Isso pode acontecer nos quatro empréstimos de longo prazo que o banco central irá realizar a partir de Junho às instituições financeiras da zona euro e onde a taxa de juro praticada pode ser tão baixa como -0,4%.

Depois, para além de estimular os fluxos de crédito através do corte das já muito baixas taxas de juro, o BCE reforçou a sua estratégia de criação de dinheiro ao aumentar o volume de compra de activos que pretende realizar nos mercados. Em vez dos 60 mil milhões de euros vão passar a ser 80 mil milhões de euros mensais injectados nos mercados financeiros por via da compra de títulos de dívida pública, créditos titularizados dos bancos e, agora, títulos de dívida de empresas não financeiras da zona euro.

O objectivo do BCE com estas medidas é evidente e assumido: combater o risco de entrada da zona euro numa situação semelhante à vivida pelo Japão desde os anos 90, em que a deflação mantém a economia estagnada sem retoma do consumo e investimento.

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E esse risco ficou ainda mais evidente nas últimas semanas, explicou Mario Draghi na conferência de imprensa que se seguiu à reunião. Não só a economia mundial deu sinais de mais fragilidade, como a taxa de inflação na zona euro caiu para terreno negativo em Fevereiro, empurrada pelos preços do petróleo, mas também com sinais de contágio a outros produtos.

O BCE reviu mesmo em baixa as suas projecções para a inflação, apontando agora para que a inflação fique em 0,1% em 2016, permanecendo por diversos meses em terrenos negativo e começando a subir apenas no final do ano, se as medidas agora apresentadas funcionarem. Para 2017 e 2018, as taxas de inflação previstas são de 1,3% e 1,6% respectivamente, o que mostra que atingir de forma clara o objectivo do BCE de uma inflação que fique "abaixo, mas próximo de 2%" pode ser uma tarefa bastante mais demorada do que o esperado.

Desconfiança dos mercados
Entre os especialistas, poucos discordam que o BCE avançou nesta reunião com tudo aquilo que se poderia esperar de um banco central com o seu historial e perfil. Na prática, jogou agora todos os trunfos (e mais alguns) que se adivinhava poderiam estar nas mãos dos seus responsáveis.

O problema de pôr os trunfos todos em cima da mesa é que, em princípio, fica-se com poucas possibilidades de fazer isso com sucesso uma segunda vez.

“Draghi hoje atirou tudo o que tinha aos mercados”, afirmava um gestor de fundos à agência Bloomberg, deixando um aviso: “Em princípio vai ter um efeito positivo e permitir ao BCE antecipar-se aos acontecimentos, mas será muito preocupante se não virmos uma grande reacção do mercado. Ele ficou sem novos movimentos para fazer”.

Esta é a grande questão que irá pairar nos mercados durante as próximas semanas. Será que esta demonstração de força do BCE irá produzir efeitos na economia e no sistema financeiro, ou o banco central da zona euro, à semelhança do que acontece já noutros pontos do mundo, está a perder o poder de influência que já teve?

Como seria de esperar, o presidente do BCE defendeu com todas as forças a credibilidade do banco. “A resposta [à acusação de falta de poder dos bancos centrais] foi dada hoje pelas nossas medidas. É uma longa lista de medidas. Hoje mostrámos que não temos falta de munições”, afirmou o presidente do BCE.

Para além disso, garantiu Draghi, as medidas funcionam. “Temos muitos dados que mostram que as medidas resultam numa retoma. A retoma não é espectacular, mas está lá”, disse. E para quem quisesse mais provas, Draghi deixou uma pergunta, que logo a seguir respondeu: “O que é que teria acontecido, se não tivéssemos feito nada? Uma deflação desastrosa”.

O presidente do BCE garantiu ainda que, apesar de assumir que a inflação irá ser negativa nos próximos meses, a zona euro não está em deflação e que a economia não caiu para uma situação semelhante à do Japão nos anos 90.

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Apesar deste discurso cheio de auto-confiança, os mercados não deram os sinais que seriam de esperar depois de um pacote de medidas tão agressivo. Inicialmente, o euro até começou por cair face ao dólar (a reacção esperada e mesmo desejada pelo BCE, já que ajuda a criar inflação), mas passado algum tempo recuperou e começou mesmo a subir face ao valor antes da reunião. As bolsas, tanto na Europa como nos Estados Unidos, registaram descidas acentuadas. E para piorar ainda mais as coisas para o BCE, o preço do petróleo voltou a cair.

Foi só um dia, é certo, mas o que este tipo de reacção do mercado mostra é que há investidores que o que vêem na demonstração de força do BCE é antes um sinal de desespero na luta com a deflação.

E o mais interessante é que foram provavelmente declarações de Mario Draghi na conferência de imprensa que se seguiu à reunião que conduziram a este tipo de resposta dos mercados. É que no meio do discurso optimista, o presidente do BCE não conseguiu esconder que o banco pode estar a chegar perto do limite das descidas de taxas de juro. Draghi disse disse “não esperar que seja necessário voltar a descer taxas” e reconheceu o impacto negativo sobre os lucros da banca que novas descidas da taxa de depósitos (a única que se pode esperar que ainda caia de forma significativa) poderiam ter.

Noutros pontos da conferência de imprensa, Draghi tentou passar a imagem de que o BCE ainda tem muitas outras formas de intervir. Em relação a uma descida de taxas, depois de ter dito que não esperava novas mexidas, afirmou que “os factos podem mudar”. E, para surpresa de muitos, não fechou totalmente a porta, num qualquer futuro, à possibilidade daquela que é vista como uma das mais radicais políticas de expansionismo monetário: a entrega pelo banco central de dinheiro directamente às pessoas, uma medida também conhecida como “atirar dinheiro de um helicóptero”. “É um conceito muito interessante que está a ser discutido por académicos”, afirmou Draghi, salientando, porém, que a ideia “tem complexidades contabilísticas e legais” e que ainda não foi abordada no conselho de governadores do BCE.

Se os mercados e a economia continuarem a não reagir às cada vez mais temerárias medidas do BCE, estas novas e surpreendentes portas abertas, antes impensáveis, podem começar a sair do mundo académico e a saltar para a sala de reuniões do conselho de governadores. 

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