Todos aceitam trégua na Síria mas ninguém garante o seu cumprimento

Intensos bombardeamentos visam rebeldes antes da prevista entrada em vigor de uma “cessação das hostilidades”. Foi marcada nova ronda de negociações para 7 de Março.

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Guerrilheiro do grupo Failaq al-Rahman sai de um esconderijo em Arbin, na região de Ghouta oriental AMER ALMOHIBANY/AFP

Quase cem facções rebeldes comprometeram-se a cumprir uma trégua de duas semanas na Síria, a partir da meia-noite, que o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou por unanimidade já esta noite. Diplomatas e a oposição avisam o regime de Bashar al-Assad e os seus aliados para não atacarem estes grupos a pretexto da luta contra o terrorismo, porque foi precisamente isso que aconteceu na última noite, antes da entrada em vigor desta pausa nos combates, com a aviação russa e o Governo a lançarem violentos bombardeamentos em diferentes partes do país.

Negociada pelo Grupo Internacional de Apoio à Síria, co-presidido por Estados Unidos e Rússia, a trégua exclui a luta contra organizações rotuladas pelas Nações Unidas como terroristas. Para além do autodesignado Estado Islâmico, enumera-se a Frente al-Nusra (que apelou aos rebeldes para não cumprirem “esta trégua humilhante”), tida como o ramo da Al-Qaeda na Síria, mas cujos combatentes integram diferentes coligações com rebeldes considerados moderados e interlocutores legítimos por parte de Washington.

"Há sólidos motivos para encarar este cessar de hostilidades com cepticismo, mas esta é a nossa melhor hipótese de reduzir a violência. Mas é claro que estamos preocupados com a continuação dos bombardeamentos praticamente até ao último minuto, em locais que não são sequer controlados pelo Estado Islâmico ou pels Al-Nusra, como Daraya, nos arredores de Damasco", frisou a embaixadora dos EUA no Conselho de Segurança, Samantha Power.

O Presidente russo, Vladimir Putin, prometeu prosseguir a sua “luta implacável” contra estes dois grupos e “outras organizações terroristas” que não identificou, dizendo esperar que os EUA e os países da coligação internacional que estes formaram estejam empenhados em fazer o mesmo. Moscovo garante ter atacado apenas “grupos terroristas” nos últimos dias e tinha-se comprometido na segunda-feira a não atacar outras forças, mas continuou a fazê-lo.

De acordo com o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, uma ONG próxima da oposição, “de noite e durante a manhã houve ataques russos mais intensos do que o habitual nos bastiões rebeldes de Ghuta oriental, no Leste de Damasco, no norte da província de Homs [Centro do país] e no ocidente da província de Alepo”, a grande cidade do Norte. O próprio Exército sírio “bombardeou violentamente Duma [principal cidade da região de Ghuta] com rockets”.

Várias pessoas da mesma família, incluindo crianças, foram mortas em Duma e “há muitos feridos em estado crítico ou debaixo dos escombros”, disse à AFP Rami Abdel Rahman, director do Observatório. “É como se eles [russos e regime] quisessem subjugar os rebeldes nestas regiões ou marcar pontos antes da trégua.” Os raides visaram ainda Jobar, bairro nos subúrbios da capital, e Daraya, uma cidade também perto de Damasco.

Num comunicado, o Alto Comité de Negociações, que incluiu os principais grupos da oposição, confirmou “o acordo das facções do Exército Livre da Síria [primeiro e maior grupo armado de opositores] e da oposição a uma trégua temporária a partir da meia-noite de sábado” (22h00 em Portugal continental), num total de “97 facções”. O texto refere as duas semanas previstas e diz que uma comissão militar presidida pelo coordenador deste comité, Riad Hijab, vai “seguir e acompanhar a aplicação” da trégua.

Negociações a 7 de Março

Esta não será monitorizada directamente pelas Nações Unidas: denúncias de violação do cessar fogo serão verificadas pelo grupo de trabalho internacional de Staffan de Mistura, o enviado especial das Nações Unidas para a Síria, disse o diplomata ao Conselho de Segurança, sem no entanto entrar em pormenores sobre como será feita essa verificação.

Staffan de Mistura convocou, no entanto, uma nova ronda de negociações de paz para 7 de Março. A 3 de Fevereiro, o diplomata interrompedu abruptamente as negociações, por considerar que não havia condições para o fazer.

O Comité de Negociações avisou ainda o Governo e os seus aliados para não usarem “o acordo para continuarem as operações hostis contra as facções da oposição com a desculpa de combaterem o terrorismo”.

O Kremlin já garantira que o regime aceita a trégua e o mesmo fizeram os líderes do principal grupo armado curdo, as Unidades de Protecção do Povo (YPG). O Governo turco, que integra o Grupo Internacional de Apoio à Síria, também diz que vai parar com os ataques que lançou há quase duas semanas contra os curdos sírios mas diz ter muitas dúvidas que Damasco e Moscovo cumpram o acordado. E reserva-se o direito de voltar a visar a milícia curda “na fronteira se a solução piorar”.

Num conflito que se arrasta há quase cinco anos sem qualquer trégua, com centenas de milhares de mortos e quase 5 milhões de refugiados, e onde hoje há uns estimados 160 grupos envolvidos em confrontos, ninguém tem certezas sobre o que acontecerá no terreno.

A ideia é que uma diminuição da violência permita levar ajuda a sírios que dela necessitam – 13,5 milhões, segundo a ONU precisam de protecção e assistência – e que estão em zonas sitiadas ou de difícil acesso. Idealmente, estas semanas de trégua deveriam ainda abrir caminho ao reinício de negociações políticas entre o regime e a oposição – as conversações que começaram no início de Janeiro foram interrompidas por causa da ofensiva de Assad contra Alepo.

"Mesmo uma redução parcial da violência no terreno faria uma grande diferença para a vida dos sírios", sublinhou a embaixadora Samantha Power.

Como habitualmente em todas as negociações sobre a Síria, há diferentes interpretações do que está em jogo. Um dos exemplos é a cidade de Daraya, que o regime já afirmou estar excluída da trégua por ali se encontrarem jihadistas da Frente al-Nusra. Para a oposição, “uma nova agressão aqui será considerada como uma violação clara do acordo para a cessação de hostilidades”, já que aqui não estão presentes “quaisquer grupos que possam ser tidos como terroristas”.

Obstáculos e cepticismo

Antes de uma reunião em Genebra onde deveriam ser debatidas “as modalidades da aplicação da trégua” que Washington diz que será monitorizada (para já, não se sabe como nem por quem), o ministro dos Negócios Estrangeiro russo, Sergei Lavrov, admitiu que ninguém podia dar “100% de garantia” do cumprimento do acordo. Para mais tarde estava ainda previsto um encontro do Conselho de Segurança onde este acordo se deveria transformar numa resolução.

Lavrov também disse que Washington devia parar de pedir a demissão de Assad, enquanto Putin afirmou que “ninguém devia pensar em cenários como uma ofensiva terrestre ou a imposição de zonas de exclusão aérea”, tudo opções que norte-americanos, franceses, turcos e sauditas já defenderam.

A Casa Branca já deixou há muito de repetir que Assad tem de sair de cena, mas para a oposição síria é impensável que isso não aconteça. No comunicado sobre a trégua, o Comité de Negociações afirmou o seu empenho numa solução política “que garanta um processo de transição na Síria, começando pela constituição de um organismo de transição dotado de amplos poderes e no qual não há lugar para Assad e a sua clique”.

“Nenhum de nós tem ilusões. Há muitos potenciais obstáculos e muitas razões para o cepticismo”, afirmou o Presidente dos EUA, Barack Obama. Em declarações à CNN, Robert Malley, o principal conselheiro de Obama para o combate ao Estado Islâmico, disse que “podia dar um milhão de razões” para este cepticismo. “Basta olharmos para os últimos cinco anos e isso dá-nos muitas razões para duvidar do que o regime fará, do que os russos farão… Não vamos entrar nisto com a esperança ingénua de que, de repente, tudo vai ficar muito melhor.”

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