Rússia mudou equilíbrio de forças na Síria e dita agora as suas condições

Com as forças leais a Assad a fecharem cerco a Alepo, EUA acusam Moscovo de querer adiar trégua até 1 de Março. Primeiro-ministro russo avisa que incursões estrangeiras podem desencadear “nova guerra mundial”.

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A ONU calcula que 51 mil pessoas fugiram dos combates na região de Alepo e outras 350 mil arriscam ficar cercadas em Alepo Karam al-Masri/AFP

Um pouco mais de 500 missões aéreas e quase 1900 alvos destruídos numa única semana bastaram para a Rússia quebrar o impasse na mais decisiva das frentes de guerra – Alepo, a maior e mais estratégica cidade da Síria. De uma assentada, Moscovo parece ter invertido a sorte do regime de Bashar Al-Assad, cuja situação era há meses desesperada, e reservou para si um papel central na definição do futuro político do país. Um impulso que lhe permitiu chegar à reunião das potências envolvidas no conflito com a proposta de um cessar-fogo apenas a partir de 1 de Março, o que daria quase três semanas às forças pró-Assad para concluírem o cerco às zonas controladas pelos rebeldes em Alepo.

“A posição ocidental é a de que não existe uma solução militar para a Síria, mas Moscovo mostrou efectivamente que discorda”, escreveu Jonathan Marcus, especialista da BBC em assuntos diplomáticos, num artigo em que contrasta a acção determinada do Presidente russo, Vladimir Putin, desde que, em Setembro, decidiu ir em auxílio de Assad com a falta de estratégia e as contradições dos Estados Unidos e dos seus aliados.

Uma avaliação que se repete na imprensa à medida que o Exército sírio, com o apoio das milícias xiitas em terra e dos aviões russos no ar, progride nos campos e aldeias a norte de Alepo – depois de a 3 de Fevereiro terem cortado a principal via de abastecimento dos rebeldes, as forças leais ao Presidente dizem estar perto de completar o cerco à metade leste da cidade, em poder da rebelião desde 2012. Lá dentro, a situação é cada vez mais difícil: as mercadorias começam a escassear, os preços dos bens essenciais dispararam, os bombardeamentos aéreos são intensos e o medo espalha-se como peste.

“Aqui toda a gente teme o cerco. Sentimos que ele se aproxima, de forma inevitável”, contou à AFP Abu Mohammad, comerciante num dos bairros controlados pelos rebeldes, de onde só se sai agora por uma longa e perigosa estrada que liga o norte da cidade à vizinha província de Idlib, um dos últimos redutos da oposição no Noroeste da Síria. “O que acontecerá quando já não houver nada para comer? Vamos morrer à fome”, alarma-se Mohammad, no mesmo dia em que as Nações Unidas confirmaram que 51 mil pessoas fugiram dos combates na região e há 350 mil civis que arriscam ficar cercados em Alepo.

Um pano de fundo sombrio para a reunião do Grupo Internacional de Apoio à Síria (ISSG, na sigla em inglês), que volta a sentar à mesma mesa os aliados de Assad (Rússia e Irão) e os apoiantes da rebelião. O encontro, agora em Munique, pode ser o último esforço para evitar o colapso do plano, acordado em Novembro, para uma transição política na Síria no prazo de ano e meio. A primeira pedra desse caminho eram as negociações indirectas entre o regime e a oposição mas a ofensiva em Alepo, que coincidiu com o início dos contactos em Genebra, matou a iniciativa à nascença. E as trocas de acusações entre os russos e ocidentais, desde então, não deixam antever grandes avanços em Munique.

Para manter viva a esperança de uma solução política, os ocidentais insistem que o primeiro passo é a definição das condições para um cessar-fogo em todas as frentes que opõem o regime aos rebeldes (a ofensiva internacional contra o Estado Islâmico é excluída) e para o envio de ajuda humanitária a todas as zonas cercadas.

“Queremos um cessar-fogo imediato”, disse à AFP um responsável do Departamento de Estado norte-americano, assegurando que Washington recusa liminarmente a ideia, que Moscovo não confirmou oficialmente, de adiar a trégua por três semanas – um interregno que, teme, seja suficiente para as forças pró-Assad conquistarem terreno decisivo, cercando Alepo e cortando o acesso dos rebeldes à fronteira com a Turquia. “Falar pelo simples facto de falar, ao mesmo tempo que se continua a bombardear, isso ninguém vai aceitar”, disse o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, no avião a caminho de Munique.

O problema é que, ao contrário da Rússia, os Estados Unidos têm pouca margem de manobra para impor as suas condições – e Moscovo sabe disso. “Fizemos propostas de cessar-fogo que são muito concretas. Esperamos uma resposta americana antes de a apresentar ao ISGG”, afirmou o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, à chegada à Alemanha, sem adiantar a partir de que data ou em que condições poderão os aviões que Moscovo tem na Síria ficar em terra – um diplomata russo adiantou à Reuters que o Kremlin não aceitará cessar os bombardeamentos sem a garantia de que a fronteira com a Turquia será selada de forma a quem nem armas nem combatentes se possam juntar às fileiras dos rebeldes entre os quais, lembram, está o braço sírio da Al-Qaeda.

Numa entrevista ao Washington Post, Kerry afirmou terça-feira que, se a reunião de Munique demonstrar que Putin “não está seriamente interessado” numa solução política, os EUA “têm de ter em consideração um plano B”. A afirmação levou a imprensa a especular que o fracasso das negociações forçará o Presidente Barack Obama a tomar a decisão, a que tem resistido até agora, de enviar armamento sofisticado aos rebeldes – o WP admitia a entrega de uma nova geração de mísseis antitanque TOW. Mas mesmo essa opção será dificultada pelos bombardeamentos russos contra as rotas que a CIA estava a usar actualmente para o seu pouco secreto programa de treino e armamento dos rebeldes, escreveu o New York Times.  

Com Putin a colher os frutos da arriscada aposta que fez no Outono – quando as forças de Assad estavam pareciam prestes a perder terreno vital no Oeste da Síria –, cresce a irritação dos aliados com Washington e alguns sugerem mesmo que poderão não esperar pela liderança americana para intervir. A Arábia Saudita sugeriu que poderia enviar tropas para a Síria, no quadro das operações contra o Estado Islâmico, e a Turquia não exclui intervir para impedir a aproximação das forças de Assad junto à sua fronteira. Mas às dúvidas sobre o apoio e a capacidade que uns e outros teriam para avançar juntou-se nesta quinta-feira o aviso do primeiro-ministro russo sobre o risco de uma “nova guerra mundial” com epicentro na Síria. “As ofensivas terrestres tendem a tornar as guerras permanentes”, lembrou Dmitri Medvedev numa entrevista ao diário económico alemão Handelsblatt, em que aconselhou os “americanos e os seus parceiros árabes a pensar cuidadosamente” antes de agirem.

Os analistas dividem-se sobre quanto tempo estará Putin disposto a prosseguir a ofensiva aérea e que objectivos exactos quer alcançar, mas mesmo em Washington se admite que a sua estratégia está, pelo menos para já, a dar frutos. “As intervenções russas [na Síria e na Ucrânia] demonstram a melhoria das capacidades militares russas e a confiança do Kremlin a usá-las”, disse James Clapper, o patrão das secretas norte-americanas numa audição, terça-feira, no Senado.

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