Itália quer acabar com os falsos debates e as falsas unanimidades

A Itália quer começar um debate político a sério na Europa que não esconda divergências e permita restaurar a confiança que se perdeu com a crise, diz Sandro Gozi, o responsável de Roma para a UE.

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Merkel e Renzi: "São necessárias visões alternativas à que dominou na última década", diz o governante italiano Guido Bergmann//Bundesregierung/REUTERS

Sandro Gozi, o braço-direito de Matteo Renzi para as questões europeias, esteve em Lisboa nesta semana para conversações com o Governo português. A Itália quer mudar algumas regras do jogo europeu e precisa de aliados. Na agenda, a questão dos refugiados, mas também a necessidade de crescimento económico e, para isso, de maior flexibilidade orçamental. 

Reuniu-se com a sua homóloga portuguesa Margarida Marques e também no Ministério das Finanças. Porquê agora?
Estamos muito empenhados em trabalhar com o Governo português, liderado por António Costa, no sentido de uma mudança em vários aspectos da política europeia. A Itália e Portugal partilham de alguns objectivos comuns, como a valorização do crescimento, o combate ao desemprego e as reformas destinadas a melhorar a competitividade, complementadas por uma abordagem mais flexível das metas do Orçamento. 

Dará apoio ao Governo nas negociações do Orçamento em Bruxelas?
Temos apelado sempre a uma interpretação mais inteligente [das metas do défice]. Em Junho de 2014 conseguimos um compromisso do Conselho Europeu para aceitar a máxima flexibilidade possível que está inscrita no Pacto Orçamental. Queremos que esta flexibilidade seja aplicada a todos os países e não só em Portugal e Itália. Não pedimos para mudar as regras, mas queremos aplicá-las de forma a favorecer o crescimento. Mas não podemos intervir nas negociações entre Portugal e a Comissão. 

A questão central, para o seu Governo, era o crescimento da economia. Quase dois anos depois, a economia italiana teve em 2015 um crescimento modesto: 0,8%.
É preciso recordar que, quando chegámos ao Governo, a Itália estava em recessão. Na altura, menos 3%. Evoluir para mais 0,8 é já um grande passo. O crescimento voltou. Estamos satisfeitos? Não. Precisamos de fazer mais. É essa razão pela qual embarcámos num conjunto de reformas muito sérias.

Estão a ser feitas? Há quem diga que esse ímpeto inicial está a perder-se.
Não concordo. Fizemos num ano e meio muito mais do que a Itália fez nos últimos 20 anos. Reforma do mercado de trabalho, da Administração, da justiça civil. Reformámos a Constituição profundamente [vai haver um referendo em Outubro], adoptámos uma nova lei eleitoral. Fizemos uma profunda reforma educativa. Lançámos um novo plano digital, porque acreditamos que a economia digital é um passo fundamental para a Itália.

Estamos a assistir a um confronto entre o Presidente da Comissão, Jean-Claude Juncker, e o primeiro-ministro Renzi: dinheiro para a Turquia, refugiados, flexibilidade orçamental, etc.. Porquê?
Ontem [quarta-feira] Juncker voltou a essa questão, dizendo que não há problemas nas relações com o Governo italiano. Não é um confronto, trata-se sim de um debate. Estamos convencidos que é preciso abrir um debate político para relançar a Europa.

Em todas as suas dimensões?
Certamente a política económica, a governação da zona euro, Schengen, a revisão de Dublin e do sistema de asilo, para construir um sistema europeu de asilo, e queremos que a Europa volte aos seus valores fundamentais. A Comissão está igualmente empenhada. Precisamos de debater a política energética, a aplicação da terceira fase da União Bancária sobre a garantia de depósitos, que é uma peça fundamental.

Também acusaram Juncker de ser demasiado condescendente com Berlim.
Não. Somos e seremos críticos, mas de uma forma construtiva, de cada vez que virmos que o caminho para a reforma da União é demasiado tímido e não está a responder a tempo. O maior exemplo é o caso dos refugiados. O tempo que se desperdiçou até decidir enfrentar o problema foi muito.

E ainda é. O objectivo de recolocar 160 mil refugiados vindos da Itália, Grécia e Hungria está a avançar com uma lentidão impressionante.
É demasiado lento, embora seja do interesse da Europa, não só de Itália. É a credibilidade da Europa que está em causa. E estamos a fazer a nossa parte: já concluímos mais de 50% dos hot spots [para o registo e a triagem dos refugiados], mas apenas 0,6% do objectivo de recolocação foi cumprido. Em matéria de retorno, a concretização é zero. É uma desilusão.

Entretanto, a Áustria anunciou que vai limitar a entrada de refugiados, Merkel está sob ataque cerrado dos seus correligionários.
É difícil dizer que a Itália, a Alemanha e a Suécia são parte do problema. A Suécia abriu as portas a todos que fugissem da Síria. Merkel também. Creio que é um sinal positivo. Os três países estão do mesmo lado: todos pedem o reforço de Schengen e a Alemanha pede finalmente uma revisão de Dublin. A Comissão já apresentou uma proposta para criar uma força de polícia europeia para a fronteira externa da União e está a preparar propostas para rever Dublin. Temos de europeizar a fronteira externa e, paralelamente, pôr de pé uma verdadeira política comum de asilo. Uma coisa sem a outra não é possível. É por isso que temos de evitar cair na tentação de soluções nacionais fáceis mas ineficazes para um problema que só pode ser resolvido ao nível europeu. Mas é uma questão muito quente em todos os países.

Os partidos xenófobos e antieuropeus estão a crescer por toda a parte.
Absolutamente. Os terroristas usam a mesma estratégia dos movimentos xenófobos. Querem partir ao meio as nossas sociedades, empurrando os muçulmanos para as mãos dos terroristas e pondo os europeus os movimentos xenófobos. A única forma de contrariar esta estratégia é criar uma verdadeira política europeia. Perdemos irresponsavelmente um ano e meio, não podemos perder mais.

Em Itália, a popularidade do Movimento Cinco Estrelas voltou a subir, enquanto a de Renzi está a cair. Os governos são penalizados por fazer o que está certo?
Não estamos preocupados com as sondagens diárias, estão sempre a mudar. Vamos continuar com o nosso programa de reformas, independentemente dos ataques xenófobos da Liga Norte ou dos ataques demagógicos do Movimento Cinco Estrelas. Vamos ter o referendo de Outubro sobre a Constituição e veremos se os italianos apoiam ou não as nossas reformas. Será um teste importante. Queremos fazer reformas também porque é a forma de a nossa voz ser muito mais ouvida na UE. Em 2011, a Itália era o “homem doente” da Europa. Somos fundadores, sempre demos a nossa contribuição, queremos regressar à cena europeia e que a Itália tenha o respeito das instituições europeias e dos nossos parceiros.

Renzi sempre disse que queria liderar uma visão alternativa da Europa, dentro do quadro do euro. Quase dois anos passados, pensa que esta alternativa já é clara? Ou a visão continua a ser a de Merkel.
Creio que, finalmente, estamos a abrir um debate. São necessárias visões alternativas à que dominou na última década. A austeridade foi uma receita útil para sairmos da crise financeira, mas não é útil para promover o crescimento. É por isso que o nosso primeiro-ministro quer abrir uma debate político na Europa. O que temos de evitar é aquilo a que chamo um debate falso e uma unanimidade falsa. Temos de nos libertar disso.

Há críticos de Renzi que dizem que ele escolheu como aliados dois pequenos países fracos, Portugal e a Grécia. Como responde a isto?
Portugal e a Grécia atravessaram um período muito difícil mas agora têm governos comprometidos com a aplicação das reformas, e que ao mesmo tempo têm em atenção a dimensão social. Isto deve ser respeitado. A confiança mútua entre os governos e os povos foi-se perdendo ao longo da crise. E se isso aconteceu foi porque a Europa passou a funcionar em torno de países credores e países devedores, o que foi devastador para a coesão política e social. Estamos determinados em reconstruir esta coesão e estamos a conversar com os nossos parceiros europeus. Não são ideias ou propostas contra este ou aquele, são apenas a favor de uma visão alternativa, que tem já algum apoio na Europa.

A Itália manifestou-se contra a construção de um novo gasoduto, o North Stream II, entre a Rússia e a Alemanha, levando à desistência da construção do South Stream. Como é que explica este tipo de decisões da Alemanha?
Não dissemos que somos contra. Dissemos que, para reconstruir a confiança mútua, temos de ter uma abordagem comum em questões que são muito importantes. O que fizemos foi levantar questões junto da Comissão sobre o North Stream II, para saber se respeita a política energética da União, a legislação europeia, se é consistente com os objectivos de diversificação do fornecimento, para melhorar a segurança. Esperamos que a Comissão conclua a sua avaliação. A confiança mútua também passa por saber se as regras são aplicadas da mesma maneira a todos os países.

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