Sean Penn, “El Chapo” e o fascínio mútuo entre Hollywood e o grande crime

Desde os dias em que Lucky Luciano e Al Capone lutaram pelo controlo de Hollywood, a indústria do espectáculo e os mafiosos andaram sempre unidos.

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A foto que foi publicada na Rolling Stone com o artigo de Sean Penn DR

Pode ser tentador justificar o recente encontro de Sean Penn com o maior narcotraficante mexicano, Joaquín "El Chapo" Guzmán, com a tendência já antiga do actor para se colocar no centro da intriga geopolítica. Mas o episódio também confirma uma longa e sólida tradição de dependência e consideração mútua entre Hollywood e o crime organizado

Tal como Fred Astaire e Ginger Rogers (“Ele dá-lhe classe e ela dá-lhe sexo”), o crime organizado e Hollywood deram um ao outro aquilo de que mais precisavam, fosse em forma de capital, músculo e o sedutor aroma de perigo para uns, ou fosse em forma de legitimidade, proximidade com as celebridades e uma imagem pública glamorosa para os outros.

Desde os dias em que Lucky Luciano e Al Capone lutaram pelo controlo de Hollywood, até ao momento em que o lendário advogado da máfia Sidney Korshak fez todo o tipo de pressões para os estúdios da MGM deixarem Al Pacino fazer o papel de Michael Corleone no filme O Padrinho, a indústria do espectáculo e os mafiosos sempre andaram unidos como uma mão com soqueira dentro de uma luva branca de seda. A relação dura pelo menos desde os anos 1920 quando “os rapazes” de Chicago que controlavam os sindicatos chegaram a Los Angeles para ajudar os executivos dos estúdios a ter mão nas suas equipas. Como disse Gus Russo, que escreveu sobre Korshak no seu livro Supermob, Hollywood foi uma “cidade da máfia” durante décadas, possivelmente até aos anos 1980.

“Muito dos filmes que conhecemos e adoramos tiveram a ‘mediação’ musculada dos Chicago outfit”, explica Russo. Rezam as fofocas da altura, por exemplo, que Jill St. John só conseguiu o seu papel no filme de James Bond, Os diamantes são eternos, graças à sua amizade com o intimidante e bem relacionado Korshak – que, para que fique registado, nunca foi formalmente acusado ou condenado por qualquer crime.

“Digamos que com um piscar de olho de Korshak a Teamsters (união de sindicatos) muda de liderança”, escreveu o produtor Robert Evans no seu livro The Kid Stays in the Picture. “Um piscar de olho de Korshak e Santa Anita (famoso hipódromo de Los Angeles) fecha. Um piscar de olho de Korshak e Las Vegas fecha. Um piscar de olho de Korshak e de repente os Dodgers podem jogar basebol nocturno.”

Mas, claro, talvez a coisa mais preciosa que o crime organizado e Hollywood deram um ao outro foi histórias. De Jesse James a Al Capone – cujos assistentes terão sido consultados pelo argumentista de Scarface Ben Hecht – até Bonnie and Clyde e Goodfellas, as aventuras e desventuras de criminosos e fora-da-lei sempre foram o ingrediente mais seguro de Hollywood, sendo os retratados a sua audiência mais entusiástica e atenta. Como disse Mario Puzo, autor de O Padrinho à Vanity Fair em 1997, “a palavra ‘padrinho’ nunca tinha sido usada no sentido mafioso”. Mas depois de o livro e o filme terem saído, disse Puzo, “eles próprios começaram a chamar-se padrinhos. É tudo um conto de fadas”.

No caso de Sean Penn e “El Chapo” Guzmán, esse conto de fadas teve um desfecho surreal, resultado do fascínio congénito de Hollywood com tipos durões misturado com uma cultura dos media em que heróis e vilões têm o poder de ser os seus próprios Irmãos Grimm. Se “O Inimigo Público” de 1931 foi adaptado de um livro (não publicado) por dois antigos colegas de Al Capone, e tanto o argumento de Goodfellas como o livro que o inspirou foram escritos pelo jornalista Nicholas Pileggi, tais formalidades são ridículas e obsoletas na era do Twitter, do jornalismo-cidadão e da auto-promoção.

Quando Guzmán contactou a actriz Kate del Castillo, que antes tinha publicado no Twitter palavras de apoio ao barão da droga, ele estava simplesmente a seguir as regras do “Controla a Tua Narrativa”, em que o sujeito contorna instituições incómodas e intrometidas, como a polícia e o jornalismo, e conta a sua história directamente às pessoas ou através de um interlocutor-admirador.

Ao querer melhorar a sua imagem pública através de um biopic sobre um grande homem, Guzmán estava a seguir o exemplo do líder revolucionário Pancho Villa, que contratou o realizador D.W. Griffith para ser o seu biógrafo cinematográfico (no filme A Vida do General Villa, que Griffith acabou por não realizar, Villa fazia de si próprio). Ou talvez ele quisesse encomendar uma versão cinematográfica de um narcocorrido, as populares músicas mexicanas que celebram como heróis conhecidos traficantes e assassinos.

Fosse o que fosse que Guzmán tinha em mente em termos de género cinematográfico, ele sabia que Hollywood adora um anti-herói colorido, especialmente um que construiu um império para lá do alcance da lei. É praticamente seguro assumir que ele esperava criar uma persona ao mesmo nível de Scarface – o remake de 1983 com Al Pacino que foi elevado a um mito da cultura popular – em vez de Escobar: Paradise Lost que estreou o ano passado perante uma indiferença quase universal.

O curioso papel de Sean Penn neste episódio continua obscuro, enquanto as autoridades e o público em geral procuram saber se ele foi um idiota útil para Guzmán ou, numa versão muito mais sedutora embora pouco provável, se o actor desempenhou um papel crucial na captura do fugitivo.

É compreensível que o mundo nebuloso em que Sean Penn entrou para estabelecer contacto com Guzmán – incluindo telemóveis não localizáveis e mensagem encriptadas – possa lisonjear a vaidade de uma vedeta galante cujo último papel que desempenhou foi o de um galante mercenário.

Seja quais forem as suas motivações, a contribuição de Penn revelou que a revista Rolling Stone é tão susceptível à celebridade como o próprio Guzmán. Não só a revista terá concordado em publicar a longa história do actor sem lhe mexer uma vírgula, como enviou o texto a Guzmán para a aprovação antes de este ser publicado.

Os detalhes desta história irão ficar mais claros nos próximos tempos – muito provavelmente graças aos esforços de jornalistas e não de estrelas de cinema. Entretanto esta bizarra incursão na vida a imitar (e mesmo instigar) a arte revela bem o que manteve o mundo do crime e do entretenimento oportunisticamente ligados através de anos e anos, desde as suas culturas de impunidade à sua capacidade partilhada para o colossal auto-engano.

Felizmente este capítulo não terminou em tragédia. Mas acreditem, algures em Hollywood, um produtor já deve estar ocupado a conseguir os direitos da história.

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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