Apenas um terço dos inquéritos da PJ por abuso sexual de crianças chega a tribunal

Os inquéritos por crimes de abuso sexual de crianças são cada vez mais frequentes e o seu número é muito superior ao dos casos em que há acusação. Incluem queixas falsas ou inconsistentes mas excluem as "cifras negras" dos abusos que ocorrem e não são denunciados, diz a Polícia Judiciária.

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Neste tipo de criminalidade, a prova depende muito do depoimento da criança Daniel Rocha

Mais inquéritos por abusos sexuais de crianças investigados pela Polícia Judiciária; mais detenções de suspeitos; e mais condenados nas prisões por este crime: a tendência dos últimos anos manteve-se em 2014 e pelo menos parte de 2015. Desde o processo Casa Pia em 2002, a sociedade está mais atenta e predisposta para denunciar.

Os abusos sexuais de crianças ganharam maior peso na investigação criminal e esta ganhou mais recursos nesta área. Porém, a maioria dos processos continua a não chegar a tribunal. A elevada taxa de processos arquivados mantém-se, confirma o procurador da República Rui do Carmo que fala de “uma perda entre o inquérito e o julgamento”.

Uma perda que resulta em impunidade? “Quando nós suspeitamos que os arquivamentos vão para além dos casos em que os factos não ocorreram, há sempre impunidade, neste como em qualquer outro crime”.

Isabel Polónia, coordenadora superior de investigação criminal da Directoria de Lisboa e Vale do Tejo da Polícia Judiciária, fala antes em “crimes não esclarecidos”. Mas por motivos semelhantes: pactos de silêncio entre agressores, testemunhas e vítimas, muitas vezes a viver na mesma casa ou pertencentes à mesma família, e ausência de testemunhas e de provas periciais. A prova centra-se no depoimento da criança que, por medo ou vergonha, não revela logo ou guarda segredo. Muitas vezes, a prova perde-se durante o tempo dessa ambivalência.

Acima dos mil inquéritos
O número de inquéritos investigados pela PJ por crimes de abuso sexual de crianças tem aumentado todos os anos, mantendo-se acima dos mil pelo menos desde 2012, de acordo com os dados disponibilizados por esta polícia (até Junho de 2015). As detenções de suspeitos destes crimes, efectuadas pela PJ, têm sido também mais frequentes, segundo informações divulgadas em Maio passado, num seminário em Lisboa.

Mas esse crescimento e importância continuam a não estar reflectidos no número de casos que são julgados em tribunal, embora estes também estejam a aumentar. De acordo com os quadros disponíveis na página da Direcção-Geral da Política de Justiça (DGPJ) do Ministério da Justiça, 346 processos passaram pelo tribunal em 2013. Em 2010, houve 290 processos em tribunal e, em 2006, tinha havido 240, segundo as mesmas estatísticas, que englobam os processos relativos a abusos sexuais de crianças e menores dependentes (que estão fora da família, por exemplo, ao cuidado de instituições).

“A ausência de testemunhas e de prova pericial, por não haver lesões, dificulta muito a prova”, explica Rui do Carmo, magistrado da Procuradoria-Geral Distrital de Coimbra, na área criminal e de Família e Menores. “Na maioria dos casos, o facto ocorreu há algum tempo, já não é possível recolher elementos orgânicos e não há ferimentos. Isso torna mais difícil [a obtenção de prova] e centra a prova no depoimento da criança, decisiva neste tipo de criminalidade.”

De uma forma geral, nestes últimos anos, chegou a tribunal menos de um terço do número de inquéritos investigados pela PJ: estes passaram de 1074 em 2012, para 1227 em 2013, voltando a aumentar para 1335 em 2014. Até Junho de 2015, a PJ tinha aberto 738 inquéritos por crimes de abuso sexual de crianças, podendo esse número ter atingido os 1476 inquéritos investigados até Dezembro, se se considerar que o segundo semestre de 2015 manteve uma frequência de casos idêntica à dos primeiros seis meses do ano.

Estes dados podem transmitir uma imagem mais alarmante daquela que é a situação real, por haver denúncias que nem sempre se confirmam. As falsas denúncias para os crimes sexuais rondam os 15% ou 20%, segundo estudos internacionais referidos pela psicóloga forense Cristina Soeiro, sobre “as situações de simulação de abusos”.

Por outro lado, o número de inquéritos e detenções de suspeitos de abusos sexuais de crianças também são susceptíveis de não reflectir a realidade, no seu todo, ao excluírem situações que existem e não são denunciadas.

“Esta é uma área conhecida por ser aquela em que há mais cifras negras. Um crime sexual envolve factores da intimidade que muitas vezes levam as pessoas a não participar”, diz Isabel Polónia, coordenadora superior de investigação criminal da PJ. “Sempre que há uma suspeita, as pessoas devem participar.”

E acrescenta: “Os nossos inspectores têm formação interna e externa e, sempre que possível, procedemos às detenções. Mas há situações em que não encontramos provas, ou porque os factos não ocorreram ou porque não a conseguimos obter. Nalguns casos, as crianças são muito pequenas, ainda mal falam. Noutros, as crianças fecham-se, não querem contar os factos.”

Formação especializada
“O testemunho tem de ser credível”, diz Cristina Soeiro, doutorada em Psicologia da Justiça e especialista superior na Escola de Polícia Judiciária. “A colaboração da criança depende muito da capacidade técnica do entrevistador.”  

Nos últimos anos, as equipas foram reforçadas – 23 inspectores da PJ dedicam-se exclusivamente a crimes sexuais que envolvem crianças e adultos, em 1992 eram apenas três – e uma atenção especial foi dada à formação. 

Os inspectores adquirem novas competências: “Para motivar a criança a falar, e trabalhar, durante a entrevista, os receios que ela possa sentir se contar”, explica Cristina Soeiro, que coordena alguns dos módulos de formação. Mas também “para não contaminar a criança do ponto de vista da estruturação da memória e permitir que a revelação seja feita com o maior número de detalhes possível”.

A par de uma investigação criminal mais especializada para os crimes de abuso sexual de crianças e de uma maior consciência social, alterações legislativas foram sendo aplicadas nos últimos anos, como as que entraram em vigor no fim de 2015, que, entre outras coisas, agravam algumas penas de prisão – em crimes de lenocínio ou abuso sexual de menor dependente – e excluem a possibilidade de aplicação da pena de multa em actos sexuais com adolescentes ou no recurso à prostituição de menores.

O procurador da República Rui do Carmo relativiza o impacto de alterações à lei. “A questão central é haver capacidade de aplicação efectiva da lei penal. E não existe essa garantia. Estamos muito saturados de procurar mudar o sistema com meras alterações legais. Interessa-me ter capacidade efectiva de aplicação da lei. Se eu não tiver essa capacidade, tanto me faz que ela seja mais branda ou mais dura.”

Apesar de reconhecer avanços e melhorias na investigação destes crimes, Rui do Carmo lembra que a audição da criança para memória futura, perante um juiz, é a que tem valor de prova no julgamento. E lamenta que seja precisamente aquela que fica relegada para segundo plano.

Enquanto “um inspector da PJ pode estar preparadíssimo para fazer a inquirição e tem meios ao seu dispor, o juiz de instrução não tem nenhuma preparação para a fazer, não tem assessoria técnica que o coadjuve nessa audição”, aponta. E lembra, por exemplo, que essa audição decorre “em secções dos tribunais de instrução, indiferenciadas, sem nenhumas condições particulares para receber a criança e para garantir que ela decorre de uma forma serena e reservada”.

Melhorar a situação, reduzindo a probabilidade de um processo ser arquivado, passa, segundo Rui do Carmo, por aproximar o momento em que o facto ocorre e aquele em que a criança depõe. Mas também atender às circunstâncias em que esse depoimento é feito, dando mais importância e meios à audição para memória futura.

É aí que temos de centrar as nossas preocupações e não noutras audições, que podem trazer pistas para a investigação mas não nos trazem elementos de prova para alicerçar a convicção do juiz e que é fundamental para efeitos condenatórios”, diz, antes de concluir: “Esta falha é uma falha significativa, que causa enormes prejuízos do ponto de vista probatório.”

Números

51% dos agressores têm uma relação familiar com a criança, de acordo com o estudo de 2009 Perfis criminais e crime de abuso sexual de crianças, da autoria da psicóloga forense Cristina Soeiro, que analisou 131 casos de abuso sexual entre 2000 e 2007. Segundo a mesma investigação, além dos familiares (pais, tios, padrastos ou companheiros da mãe, avô ou companheiro da avó), 42% dos agressores eram conhecidos da criança (vizinhos ou cuidadores da criança, como um professor) e apenas 7% não o eram.

1335 inquéritos por crimes de abuso sexual de crianças foram investigados pela Polícia Judiciária em 2014 e mais de 730 já tinham sido investigados até Junho de 2015, de acordo com os dados mais recentes disponíveis. Em 2013, foram investigados 1227 inquéritos e em 2012 tinham sido 1074.

346 processos por crimes de abuso sexual de crianças e de menores de 18 anos dependentes foram julgados em tribunal em 2013. Em 2010 houve 290 processos em tribunal e em 2008 tinha havido 275.

275 presos estavam a cumprir pena por crimes de abuso sexual de crianças ou de menores de 18 anos dependentes em 31 de Dezembro de 2014, segundo as estatísticas dos serviços prisionais. Em 2010, estavam 252 pessoas presas por estes crimes, enquanto em 2005 eram 200.

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