“Percebo que a direita esteja irritada e respeito até algum azedume”

António Costa dá ao PÚBLICO a sua primeira entrevista como primeiro-ministro. Explica os acordos, como vai governar e equilibrar as contas

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"Percebo que a direita esteja irritada e respeito até algum azedume" São José Almeida, Ricardo Rezende, Pedro Sousa Carvalho, Sibila Lind

António Costa lembra que disse que pretendia romper o consenso sobre "arco do poder". Defende que a identidade partidária não está em causa nos entendimentos que fez com o PCP, o BE e o PEV em nome do PS. Escusa-se a comentar a actuação do Presidente da República. E não teme que seja necessário um plano B se a União Europeia (UE) não aceitar as suas soluções.

Como vê as críticas de que usurpou o poder?
É de quem desconhece o procedimento normal da democracia, que é que os governos devem corresponder às maiorias que existem na AR, porque estas correspondem à maioria do eleitorado.

Sente-se incomodado quando dizem que não foi escolhido pelo povo?
Não me sinto incomodado. Os cidadãos elegeram os deputados e este Governo é aquele que dispõe de um suporte parlamentar maioritário. Aliás, durante vários meses, ouvimos o Presidente explicitar que era necessário um Governo que tivesse um suporte parlamentar maioritário.

Não devia ter assumido de forma mais explícita que queria fazer uma aliança à esquerda?
Na campanha, frisei que o nosso objectivo era ganhar as eleições e ter maioria — se tivermos maioria, teremos o Governo que os eleitores decidirem directamente. Não havendo maioria, ela terá de resultar das negociações partidárias. Desde as eleições primárias até ao congresso e do congresso até às eleições, disse várias vezes que recusava esse conceito de "arco da governação" como uma forma de excluir antidemocraticamente forças partidárias que representam os cidadãos nos mesmos termos que as outras forças partidárias da solução de Governo. Explicitei sempre que não excluiria ninguém e que falaria com todas. Até disse mais. Disse na campanha eleitoral que não contassem com o PS para viabilizar a continuação das políticas do PSD e do CDS.

Passos Coelho disse que se o muro caiu agora era porque existia e os eleitores, quando votaram, sabiam que havia.
Qualquer muro é antidemocrático. Desde que concorri às primárias, na moção que foi aprovada, na moção que apresentei no congresso do PS, é expressa a recusa do "arco da governação", devo ter dado uma ou duas entrevistas ao PÚBLICO onde o reafirmei, eu nunca escondi qual era o meu entendimento sobre esta matéria. O que eu, aliás, acho absolutamente extraordinário é que, em pleno século XXI, 42 anos depois do 25 de Abril, alguém possa achar que, por natureza, há um conjunto de partidos que estão impedidos de contribuir directa e indirectamente para a construção de soluções governativas. Mas que conceito de democracia é este onde se acha que quem vota no PS, no PSD e no CDS são votos que contam e quem vota no PCP, no BE ou no PEV são votos que não contam? Que democracia seria esta? Por que se há-de entender que um deputado do CDS vale mais do que um deputado do BE? Isso é que era a subversão completa das regras democráticas.

Tem sido assim.
O que aconteceu desta vez de novo foi que todos tivemos a maturidade de dizer: ok, já sabemos bem o que é que nos distingue, sobre essa matéria não vamos discutir porque não faz sentido. Agora vamo-nos entender sobre um conjunto de matérias que são urgentes, necessárias para responder aos problemas do país nos próximos quatro anos. Para um entendimento sobre a actualização do salário mínimo nacional não temos de pensar o mesmo sobre a NATO, para pôr termo aos cortes das pensões não temos de pensar o mesmo sobre o futuro da UE. E o que formos capazes de fazer é no respeito pelas diferenças que definem a identidade de cada qual, tendo um programa comum para executar na perspectiva da legislatura. Foi isso que foi feito.

O PS vai cumprir a legislatura?
É com essa expectativa que estou, é com essa confiança que estou. Temos um Governo confiante desde logo na sua maioria parlamentar e não tenho qualquer sinal que perturbe essa minha confiança. A direita tem-se dedicado a um jogo até infantil, que é procurar descobrir a diferença onde ninguém duvida que existe a diferença. Quem é que se surpreende que sobre a Europa e sobre a moeda única, há um entendimento diferente entre o PS e o PCP, por exemplo? Nós não temos dúvidas. O PCP não tem dúvidas. E nem nós mudámos de posição nem o PCP. Não é isso que está aqui em causa, o que está aqui em causa é que, apesar dessas diferenças, o que é que podemos fazer em conjunto. E foi termos encontrado solução para esta questão que permitiu que houvesse um acordo com o BE, com o PCP, com o PEV. E, desse acordo, resultou não uma mera maioria negativa que derrubou o Governo da direita, não uma mera maioria que estaria a obstaculizar a acção governativa da direita, mas uma maioria que foi capaz de se afirmar pela positiva, como alternativa de Governo, viabilizando um Governo do PS, com um programa coerente com o programa eleitoral do PS, consistente com aquilo que foi o produto das negociações dos diferentes partidos e absolutamente compatível com os compromissos internacionais de Portugal. E percebo que a direita esteja irritada e respeito até algum azedume, agora há uma coisa que tem que acreditar: é mérito na solução encontrada e não defeitos onde eles não existem.

Já confia no BE?
Sim. Este processo negocial permitiu criar e reforçar relações de confiança entre os diferentes parceiros. É evidente que, entre partidos que há muitos anos não se falavam, ou que se falavam só para se combater nas divergências, a abertura deste processo não foi fácil. Percebo que muitas pessoas tivessem dúvidas da sua viabilidade. Eu próprio não escondi, aliás, publicamente que tinha pouca expectativa de que uma solução destas pudesse ser possível. A verdade é que foi. Isso deveu-se à vontade de todos, à boa-fé de todos, ao empenho de todos e a todos termos sido capazes de interpretar de uma forma correcta aquilo que era a vontade de mudança dos portugueses e a necessidade de estabilidade que o país tinha.

Como vê a actuação do Presidente desde as eleições?
O primeiro-ministro não avalia a actuação do Presidente da República.

Disse que queria entregar o OE 2016 na AR logo que possível. Está a pensar em Janeiro, Fevereiro?
É assim que tenhamos condições de o fazer. O país já perdeu muito tempo desde as eleições, até à investidura do Governo em plenas funções na quinta-feira passada, portanto, temos procurado encurtar prazos o máximo possível. No dia a seguir à tomada de posse, reunimos o Conselho de Ministros, aprovámos o programa de Governo e nesse mesmo dia apresentámo-lo na AR; discutimos logo na semana a seguir o programa de Governo, sem termos gasto os dez dias para a apresentação. No primeiro dia que estávamos em funções, aprovámos a lei orgânica do Governo. Conseguimos, no prazo de uma semana, responder a tudo o que era essencial para pôr o Governo a funcionar em pleno. Estamos agora a desenvolver os trabalhos não só para assegurar a melhor execução possível do OE 2015, tendo em vista assegurar e contribuir para que seja possível alcançar a meta que nos permita sair do procedimento por défice excessivo e também iniciar simultaneamente o OE 2016, de forma a que possa estar em vigor tão rápido quanto possível.

É verdade que encontraram o OE 2016 sem trabalho feito?
Não gostaria de andar a alimentar as queixas relativamente ao que encontrámos ou não encontrámos. Acho que temos de fazer aquilo que os portugueses querem que nós façamos, que é trabalhar a partir das condições que temos para resolvermos os problemas do país.

Quando chegar a Bruxelas com as suas opções orçamentais, que são diferentes das anteriores e da herança da troika, e quando a Comissão Europeia muito provavelmente lhe der o mesmo tipo de resposta que deu ao primeiro-ministro grego, que é que as receitas para aplicar são as que eles cá deixaram, qual o seu plano B?
Para já, não tenho nenhuma razão para antecipar que essa questão se coloque nesses termos. Temos mantido um diálogo normal com as instituições europeias. Na cimeira da União Europeia (UE) com a Turquia, tive oportunidade de falar com os meus diversos colegas. Já tive a oportunidade de falar com o presidente da Comissão Europeia. O senhor ministro das Finanças já reuniu com o presidente da Comissão, com os comissários da área económica, e todos conhecem aquilo que são os compromissos políticos do nosso programa de Governo, quer em matéria de trajectória de consolidação orçamental, quer as medidas de viragem da página da austeridade.

As autoridades europeias têm mostrado oposição a medidas baseadas no estímulo da procura interna, ou não?
O que eu considero essencial é executarmos o programa que temos. A política de austeridade que foi seguida conduziu a uma recessão, à estagnação, ao aumento do desemprego, a uma redução significativa da população activa, ao aumento gigantesco da emigração e a um significativo aumento do endividamento do país. Essa é uma receita que não pode ser prosseguida. Essa é a receita que dissemos que iríamos mudar e explicitámos como. E explicitámos de uma forma responsável e moderada, dizendo que viraremos a página da austeridade e cumprindo as nossas obrigações internacionais, designadamente as regras vigentes na área do euro. Dissemos mais: é verdade que discordamos de muitas dessas regras, mas, enquanto existirem, cumpriremos as regras, como aqueles que não estão de acordo com os limites de velocidade nas auto-estradas não deixam de estar obrigados a não ultrapassar os 120 quilómetros/horas. Cumpriremos as regras como elas existem, mas não deixaremos de aplicar um programa económico e uma estratégia de relançamento da economia, o qual consideramos essencial não só para garantir mais crescimento, para garantir que há emprego, para garantir maior igualdade, mas também uma consolidação saudável e sustentável das nossas finanças públicas.

Há uma questão muito sensível, que é a reestruturação da dívida. Ainda esta semana Catarina Martins disse: "Parece-nos um caminho inevitável. O peso da dívida é insustentável". É público que foi combinado um grupo de trabalho para a discutir. Até onde o Governo estaria disposto a levar esta discussão?
Como sabe, não consta do programa do Governo esse objectivo. Vai ser constituído um grupo de trabalho para analisar a dívida.

Mas é só para o BE ver, ou há uma vontade genuína de discutir o tema e chegar a uma solução?
Não. São acordos que assinámos com boa-fé e com vontade de encontrar soluções e respostas no quadro europeu e de um país responsável que cumpre as suas obrigações.

Antevê alguma para tornar a dívida sustentável, partindo do princípio que não é, como diz Catarina Martins?
Eu respondo por aquilo que está no programa do Governo e desenvolveremos o grupo de trabalho acordado com o BE. Agora, as afirmações da Catarina Martins são as firmações da Catarina Martins e as minhas afirmações são as minhas afirmações, e, nos acordos que estabelecemos, nem a Catarina Martins tem de revogar o que considera a sua posição nem eu a minha. Iremos trabalhar em conjunto. Agora, essa afirmação é dela, não foi minha.

Vão manter o processo de recrutamento dos dirigentes de topo da administração através de concurso público e na Cresap?
O Governo é defensor da estabilidade dos serviços da administração pública e da profissionalização do funcionamento da administração e dos seus dirigentes como condição, aliás, essencial para a sua própria qualificação e dignificação. O Governo já tomou a decisão de que não fará alterações em qualquer lei orgânica durante o próximo ano e que avaliaremos o funcionamento do conjunto do sistema, e naturalmente actuaremos com os dirigentes que estão em funções com total lealdade como aquela que supomos que terão na execução do programa do Governo, respeitando naturalmente aqueles que entendam que não têm condições para executar este programa e que, portanto, ponham o lugar à disposição ou pretendam cessar funções. Talvez por ter exercido sempre funções em ministérios de natureza institucional, nunca tive necessidade de provocar a demissão de qualquer dirigente para executar o que me competia executar e fazer executar. Iremos avaliar serenamente. E devemos procurar não confundir más aplicações do sistema, resultante de uma deficiente composição da Cresap ou de um mau exercício da escolha dos membros do Governo dos nomes fornecidos pela Cresap com o sistema em si.

Por que razão há só quatro mulheres ministras? O PS deixou de se preocupar com a igualdade de género?
Se me pergunta se estou satisfeito com o equilíbrio de género, não estou. Isso é a demonstração de que não há nenhum Governo perfeito.

Não havia no PS mais mulheres para convidar?
Haveria, com certeza. É o equilíbrio que entendi possível em relação ao Governo que formei.

Vão manter a não-indicação de voto nas presidenciais?
O PS deu liberdade de voto na primeira volta das presidenciais aos seus militantes, apelou à sua participação activa na candidatura da sua preferência, apelando a que haja uma convergência em torno da candidata ou do candidato da área do PS que passe à segunda volta.

A divisão do PS entre Maria de Belém Roseira e Sampaio da Nóvoa: isso não beneficia Marcelo Rebelo de Sousa?
Marcelo Rebelo de Sousa está longe de obter um resultado vencedor à primeira volta e essa dispersão de votos entre a dr.ª Maria de Belém e o dr. Sampaio da Nóvoa só pode significar que a qualidade de ambas as candidaturas tem sido suficientemente atractiva das portuguesas e dos portugueses.

Como vê a oposição interna à solução de Governo à esquerda?
O que verifiquei foi um enorme apoio à solução que propus quer na comissão política quer na comissão nacional, sem prejuízo de que é normal num partido aberto, democrático, plural como o PS, que haja algumas pessoas que prefeririam outro tipo de solução, designadamente que o PS tivesse viabilizado um Governo da direita, mas a esmagadora maioria dos socialistas, não tenho dúvidas, vê-se nesta posição de apoio a um Governo do PS.

 

 

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