“Para o meio económico esta solução de governo é um ‘quarto escuro’”

João Soares da Silva, presidente da Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva e Associados, defende que o lobbying é lícito e devia ser legalizado, mas não é “nada indicado” para a advocacia.

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João Soares da Silva Rui Gaudêncio

António Costa “corre o risco de ficar refém” do PCP e do BE, com princípios ideológicos “completamente diferentes”, o que pode influenciar a percepção de risco do país, diz o advogado João Soares da Silva, para quem o PS poderia ter sido “uma oposição activa”, obrigando Passos Coelho “a ter mais moderação”. Sobre a actual solução de governo socialista refere que para o meio económico esta “não corresponde a algo que possa ter sido dito ou antecipado”. E afirma que a reforma do sistema político continua por fazer, porque os decisores temem mexer com os seus interesses. “As clientelas dos partidos estão habituadas, para não dizer especializadas, em mover-se dentro do quadro existente. E resistem à mudança e com muita força”, sublinha. Mas declinou comentar casos polémicos de clientes como o BCP [criação de off-shores suspeitas de esconderem acções próprias do banco] e a auditora KPMG [que auditou o BES e o BESA no últimos 10 anos].

Com 63 anos, Soares da Silva fala sobre a advocacia, um sector em grande mudança, para onde entrou como estagiário de Miguel Galvão Teles, de quem foi aluno, e mais tarde sócio durante 30 anos, até à morte deste. Mas só se dedicou à advocacia depois de uma passagem pela política como fundador do PPD/PSD de que é filiado há 40 anos. Foi nesse período que conheceu Marcelo Rebelo de Sousa a quem elogia a “craveira política.” No meio há quem o conheça pelo “chinês”, por ser um rosto “indecifrável”.

Qual é a leitura que faz do elenco governamental apresentado por António Costa? 
Ainda não faço leituras.

O PCP e o BE não integram o Governo, que parece posicionar-se ao centro…
Mas o PCP e o BE não abdicaram dos seus princípios ideológicos. O grande problema é haver risco de o PS, no Governo, ficar refém de conseguir em cada momento captar o voto de quem tem visões e ideologias completamente diferentes. E a grande maioria do eleitorado, quer o que votou PS, quer o que votou na coligação, não está alinhado com as visões do PCP e do BE. Os votos do eleitorado foram atribuídos em função de uma certa expectativa. Alguém descontente que votou no BE tê-lo-ia feito no pressuposto de que o BE não seria governo, mas que teria uma voz forte. É verdade que não podemos concluir que, sabendo da intenção do PS de se coligar à esquerda, o seu eleitorado teria votado de forma diferente. Mas podemos dizer, e com alguma segurança, é que este resultado com apoio de uma frente de esquerda não estava na cabeça do eleitor. E isso preocupa-me.

Surpreendeu-o a reviravolta política gerada após as eleições legislativas de 4 de Outubro?
Sim, pois houve uma inversão inesperada das expectativas do eleitorado que não previa esta solução, mas também do meio económico e das empresas – o que é perigoso. Houve um défice de clareza na transmissão prévia de que no elenco das possibilidades admissíveis estava uma frente de esquerda. Admito que o eleitorado do PS tenha sido surpreendido. E para o meio económico a solução de governo não corresponde a algo que possa ter sido dito ou antecipado. Portanto, é um "quarto escuro".

 “O quarto escuro” vai levar a uma evolução negativa dos mercados e influenciar a percepção de risco país?
Tenho de reconhecer que é uma possibilidade. É um processo que se abrirá e que traz incerteza.

Teme o risco de fuga de investimento?
Temo que haja alguma retracção. A economia tende a ajustar-se e haverá um momento em que se vai clarificar qual o grau de razoabilidade desta solução de governo e pode-se chegar à conclusão, relativamente rápida, de insustentabilidade – o que também amenizaria a duração da incerteza. Se a evolução for positiva e o Governo não sofrer sobressaltos, será melhor, mas manterá sempre uma sombra suspensa. Por vezes essas sombras suspensas têm efeitos directos, outras retraem o investimento.

Tem havido uma tendência para o PS e o PSD governarem ao centro, ainda que com programas diferentes, mas...
... o que sucede nos sistemas de prevalência bipartida, em que as diferenças de actuação prática dos vários governos tendem a atenuar-se. Os republicanos e os democratas nos EUA e os conservadores e trabalhistas na Grã-Bretanha. Há diferenças ideológicas e programáticas e matérias emblemáticas, mas nem sempre as actuações são tão divergentes quanto isso.

Na Grã-Bretanha os trabalhistas são liderados desde Setembro pela linha dura, encabeçada por Jeremy Corbyn...
[Corbyn] Claramente radicalizou a expressão das diferenças e puxou o brilho às posições extremas do trabalhismo, ao contrário do que havia feito a liderança de Blair. Mas continua por saber se com hipóteses de governar todo este radicalismo se manteria, ou se resulta mais na oposição, porque tem menos custos.

Estava à espera de que a governação de Passos Coelho fosse marcada por uma agenda assumidamente neoliberal?
A tónica fundamental da governação foi a de responder a uma situação de emergência.

Notou-se mais uma vez, com o PSD-CDS, uma incapacidade de governar sem procurar consensos com as oposições?
Tendo a dizer que concordo com essa visão. Há uma tendência em contextos de maiorias absolutas de quem governa se esquecer de construir pontes com as oposições. Se calhar governar dá muito trabalho e tudo o que não for estritamente indispensável ao pragmatismo do dia-a-dia tende a ser desvalorizado.

Há ideia de que os primeiros-ministros se fecham nos gabinetes, rodeados de assessores?
Quem está no topo do poder tende a ser capturado pela entourage que lhe dá opiniões favoráveis e omite as críticas. Daí que para o poder político sejam importantes as vozes independentes que contrariam a tendência para um encerramento.

Depois da crispação destas eleições há quem defenda que o eleitorado do centro desapareceu. Concorda com esta ideia?
A crispação é maior agora do que foi durante a campanha. Normalmente o pico da crispação atinge-se nas campanhas eleitorais e depois diminui. E agora foi ao contrário por causa da inversão das expectativas ou da surpresa dos caminhos do PS pós eleições. Não julgo que o centro tenha desaparecido. Mas julgo que, se a orientação tivesse sido a de um entendimento entre o PS e a coligação, haveria margem para o PS ser uma oposição fiscalizadora e para o PSD e o CDS terem cedido ao PS nalgumas medidas. O PS teria tido oportunidade de ser uma oposição activa, obrigando o governo da coligação a ter mais moderação.

As reformas da administração pública e do sistema político continuam por fazer. Os quatro anos de governo de maioria absoluta foram uma oportunidade perdida?
Há quatro anos havia uma situação de emergência e o Governo, no essencial, conseguiu travá-la e inverter o caminho. Subjectivamente, teria gostado que o Governo tivesse feito mais. Mas talvez seja injusto, pois é necessário avaliar que tipo de mobilização de forças ainda sobram para quem está a lutar contra toda esta adversidade.

Foi dirigente político…
…Sim, numa época mais antiga, entre o Verão de 1975 a 1978, quando se formou a AD. Sou dos poucos militantes do PSD com 40 anos de filiação. E no período inicial estive em exclusivo na actividade política, chegando a exercer cargos dirigentes no PPD. Assim que a situação estabilizou, entendi que tinha exercido o meu serviço cívico e regressei à advocacia, que tinha interrompido.

E tem alguma pretensão política?
Não, graças a Deus, pelo menos enquanto tiver juízo. Mas, se tivesse, interrompia a advocacia.

Uma resposta que traduz bem como a função política está desprestigiada?
É verdade. Os actores da política vão sendo desqualificados aos olhos da opinião pública, sobretudo quando são profissionais sem sobrevivência fora da política. E são mais susceptíveis de serem atraídos por outro tipo de comportamentos do que quem está à vontade fora da política, onde pode escolher estar ou não. O outro aspecto é que neste ambiente globalizado o escrutínio dos políticos, que é indispensável, é levado por vezes a extremos da devassa da vida privada, sobre coisas menores susceptíveis de atrair a curiosidade do público. E deixa de fora temas que mereciam ser investigados e comentados.

Passos Coelho disse que ia fazer a reforma do sistema político e não a fez. António Costa defendeu o mesmo, mas deixou cair o tema. Sem se reformar o sistema político é possível desenvolver o país?
Este tipo de reformas fazem-se em momentos excepcionais em que há um ímpeto para se fazerem. Há temas comuns a todos os partidos: o clientelismo, o aparelhismo e a habituação. As clientelas dos partidos estão habituadas, para não dizer especializadas, em mover-se dentro do quadro existente. E resistem à mudança e com muita força. É muito difícil, mesmo a uma liderança forte, cortar o peso das estruturas, demora tempo. E é daquelas reformas que só serão feitas em momentos excepcionais, que conjugam um grande clamor da sociedade com uma utilidade política evidente e uma especial determinação de uma liderança, com capacidade de construir consensos. Algumas das revisões constitucionais, como a de 1982, são um bom exemplo.

Há interesse em reformar o sistema político se mexe com os interesses dos partidos e dos decisores?
Nem é adquirido que mexa efectivamente com os interesses dos próprios, mas seguramente que instala-lhes o receio de que mexa. E entre um sistema a que estão habituados, e cujos cordelinhos e meandros conhecem razoavelmente bem, e saltar para o desconhecido, há receio.

Pela segunda vez, a pasta da Justiça é entregue a um magistrado, agora a procuradora geral adjunta, Francisca van Dunem. A decisão é acertada?
Tenho muito boa ideia pessoal e profissional da dr.ª Francisca van Dunem, mas as questões políticas são coisas diversas das pessoais.

Como vê as investigações policiais ao ex-primeiro-ministro José Sócrates? Preocupa-o ou é a democracia a funcionar?
A mera suspeição de que actos ilícitos possam chegar ao nível de um primeiro-ministro já é altamente preocupante. Obviamente que se pode também dizer que é positivo para o sistema de Justiça de que havendo indícios eles não são varridos para debaixo do tapete e tenham tradução efectiva, porque ninguém está acima da lei. Que posso dizer? Que acompanho o caso com preocupação.

Conhece Marcelo Rebelo de Sousa desde o tempo do PPD…
E desde esse tempo que acredito nele. É uma das pessoas com maior craveira política…

Vai apoiá-lo para a presidência?
Vejo com satisfação a candidatura.

Que comentário lhe merece a ideia que existe em certos meios de que os gabinetes de advocacia são centros de lobbying e de troca de influências?
Vamos finalmente falar de um tema que eu domino [risos]. O lobbying é lícito e legítimo e devia ser legalizado. Mas não é nada indicado para os advogados. E de uma forma geral os centros de lobbying não são de advogados.

Mas há advogados a fazer diariamente lobbying nas televisões…
Rejeito a tese de que em Portugal os advogados ou as grandes sociedades de advocacia fazem lobbying. Os advogados têm interesses de clientes para defender no plano jurídico, mas não envolve lobbying. Pode acontecer que alguns advogados, até individualmente e menos conhecidos do grande público, possam fazer lobbying. Mas também há por aí muita gente, muito influente nesse domínio, a actuar de modo próprio.

Como se faz a triagem?
Não se faz. A tal acção de lobbying não é permanente e é volátil – isto é, quanto a advogados, ao longo dos anos, acontece que o pequeno escritório A ou o advogado individual B têm uma certa preponderância ou uma relação especial com o ministro, com grupos de ministros ou sectores do governo. E pode gerar-se a tentação de que se foi procurado em nome dessa suposta influência, que altera no momento seguinte, ou na substituição do governo. Não é uma influência permanente e sistemática, mas esporádica e transitória.

António Vitorino, Marques Mendes, José Luís Arnault, Morais Sarmento…
… Não falo de nomes. O que acontece é que de vez em quando aparecem advogados envolvidos na percepção pública desse tipo de influência. E sem nenhum carácter pejorativo ou suspeição de legalidade, temos visto que se vão sucedendo. E quem está fora desse circuito, como nós, acaba por beneficiar, pois ganha uma reputação de maior seriedade. Mas também há caso de advogados mediáticos, influentes no sentido em que cada vez que emitem uma opinião ela é ouvida. Mas não é lobbying.

Está a pensar no seu colega de escritório António Lobo Xavier?
Por exemplo. A sua popularidade resulta de ser um cidadão com intervenção pública e uma voz respeitada.

Como é que vê o facto de haver deputados a exercer em simultâneo a advocacia? 
A participação política dos advogados deve ser determinada pela sua condição de cidadão. E é muito positiva. Os advogados participarem em debates, assinarem abaixo-assinados, participarem em campanhas eleitorais é de estimular. Mas ser simultaneamente advogado e titular de um cargo político não é adequado e deve haver separação total. A advocacia deve ser exercida em regime de exclusividade.

O que responde a quem questiona as práticas pouco ortodoxas da advocacia de negócios?
A advocacia de negócios é uma expressão. O cerne da advocacia é defender os interesses dos clientes na sua vida pessoal, profissional e empresarial. Pode ser advocacia de negócios, se falamos da vida empresarial ou económica, mas também o é um trespasse ou um contrato de uma pastelaria, que são pequenos negócios.

Há a ideia de que a crise financeira, da dívida pública e económica afectou o mundo dos negócios e as empresas, mas os grandes gabinetes de advocacia continuam pujantes.
Resisto a fazer essa distinção. A raiz da advocacia é só uma, seja em prática individual, em grandes ou pequenos gabinetes. E é do mais nobre que existe: tomar em mãos a defesa de interesses alheios e procurar desempenhar o cargo com dedicação absoluta, dando voz e expressão às pretensões seja de pessoas físicas, de grandes ou de pequenas empresas, em negócios ou transacções. Essa raiz comum impõe um padrão comum no exercício da função.

Quais os desafios para a advocacia de negócios?
Nos últimos dez anos tem-se discutido se as grandes sociedades não estão ameaçadas pela deslocalização de serviços, ou seja, se parte dos serviços que hoje prestam não serão, no futuro, prestados por outro tipo de organizações mais flexíveis.

Pode concretizar?
Hoje em dia alguns dos serviços mais estandardizados e menos sofisticados da advocacia estão a ser deslocalizados para a Índia, para a Irlanda, ou para centros que os produzem de forma mais eficiente e barata. Estamos a falar de áreas que levaram o professor Richard Susskind a publicar um livro a que deu o título The End of Lawyers, onde profetiza que, no futuro, muito do que hoje é feito pelas grandes sociedades passará a ser feito por outras entidades mais flexíveis, mais informatizadas, por consultoras e centros de base tecnológica. Estou a falar da recolha e tratamento de documentação, por exemplo.

Que impacto vai ter na configuração da actividade?
Tenho defendido que esta tendência vai levar ao ressurgimento de uma era de grandes advogados. De advogados dedicados às áreas mais sofisticadas da profissão, aquelas em que os advogados com mais competências técnicas não podem ser substituídos. Antes ia-se falar com o Azeredo Perdigão, com o Bustorff Silva… Houve, depois, uma certa massificação, mas que tenderá agora a recuar e quem se vai impor no panorama da advocacia serão os grandes advogados, seja em grandes sociedades, em pequenas boutiques ou de prática individual.

Que avaliação faz do investimento chinês em Portugal?
Temos na nossa rede MLGTS Legal Circle um dos maiores escritórios em Macau com cerca de 20 advogados e empenhamo-nos em manter a triangulação entre a China, a África lusófona e Portugal. Um dos pólos mundiais, e um dos mais relevantes, está ali. O nosso associado em Macau vai abrir em breve o primeiro escritório da região na República Popular da China. De certa forma somos pioneiros, uma vez que patrocinámos o Estado português e a EDP no primeiro grande investimento chinês, o da Three Gorges. E apoiámos a transacção da REN. Hoje temos como clientes grandes investidores chineses e acompanhamos de perto esse fenómeno.

Não o preocupa o volume de investimento chinês em certas áreas estratégicas?
Não só é positivo, como é inevitável que a China se volte para o exterior e que invista, nomeadamente, na Europa, onde existe um sistema de comunicação em que qualquer investimento tem capacidade de circulação. É positivo que percentualmente um dos maiores investimentos fora da China seja em Portugal, o que significa que encontraram aqui uma abertura e um ambiente propício, o que é uma vantagem para nós. Se é para manter? Bom, isso vai depender de dois factores: da nossa atractividade como país, ou seja, de termos onde receber investimento, o que não é fácil, pois não há muitos sectores, talvez o turismo e as infra-estruturas; e de continuarmos a oferecer algo relevante, como seja segurança e um ambiente amigável, o que nem sempre existe lá fora.

O alinhamento do Governo à esquerda põe em causa o  investimento chinês?
Confesso que não faço ideia. Há preconceitos ideológicos na zona apoiante do futuro Governo PS e que podem interferir.

Recentemente o seu gabinete (e o da VdA) fez publicidade de página inteira nos jornais. Não é uma afronta à Ordem dos Advogados que proíbe a publicidade no sector?
Houve uma iniciativa de um jornal, o Financial Times, que teve um tipo de divulgação especial, o que pode ter tido depois um complemento.

 Mas concorda com a proibição de publicidade à advocacia?
De uma forma geral sou avesso a proibições, mas também a publicidade. E viveria bem com a publicidade de todos os meus colegas, mas menos bem com publicidade própria. Sou adepto da discrição. Nunca vi os advogados serem procurados por terem um anúncio muito bonito. Talvez nem devesse estar a dar-lhe esta entrevista, pois os advogados não devem sair da privacidade da relação com os seus clientes.

Mas está a falar com o PÚBLICO na qualidade de cidadão…
… pois…

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