Câmara de Lisboa deixa começar obras da torre de Picoas sem resolver questões essenciais

Edifício já em obras vai ocupar parcelas do domínio público municipal cuja cedência ainda não foi negociada. Empresa dona do vizinho parque subterrâneo também tem de chegar a acordo com a câmara e com promotor para que a obra se possa concretizar.

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A empena cega de mais de 20 metros ficará sempre à vista na Fontes Pereira de Melo GUILHERME MARQUES

As obras do polémico edifício de 17 andares que vai ser construído em frente à Maternidade Alfredo da Costa começaram em Agosto sem estarem resolvidas várias questões que, em circunstâncias normais, deveriam preceder o início dos trabalhos. Os serviços de gestão patrimonial da câmara não foram consultados em devido tempo e, recentemente, manifestaram fortes reservas quanto à condução do processo. Por outro lado, a empresa Empark, que explora um parque de estacionamento no local, não formalizou o seu consentimento indispensável à realização da obra. Por fim, a assembleia municipal ainda não foi chamada a pronunciar-se sobre algumas matérias que poderão condicionar o futuro do projecto.

Já no início deste ano, quando a maioria camarária aprovou o Pedido de Informação Prévia (PIP) sobre a viabilidade da obra, a proposta subscrita pelo vereador Manuel Salgado omitiu que o projecto só poderia ir por diante se a câmara cedesse ao promotor (a Edifício 41, uma empresa com ligações ao antigo Banco Espírito Santo) várias pequenas parcelas de terreno no total de 191 m2. 

Os serviços de urbanismo tinham identificado claramente a necessidade de o município entregar ao promotor essas parcelas públicas, em troca de outras suas, de igual dimensão, mas a Direcção Municipal de Gestão do Património, que superintende nessa matéria, não tinha sido ouvida sobre a viabilidade e as condições do negócio. O PIP foi no entanto aprovado sem que a decisão ficasse sequer condicionada a um futuro entendimento entre o município e o promotor quanto à realização daquelas permutas, que terão de ser aprovadas pela câmara e pela assembleia municipal.

Já depois da aprovação do PIP, a câmara submeteu à assembleia uma proposta, que os deputados municipais aprovaram, relativa ao destino a dar aos 2,8 milhões de euros resultantes da venda à Edifício 41 dos créditos de construção que lhe permitirão construir mais quase 4 mil m2 de pavimento do que aquilo a que tinha direito. A questão das permutas, todavia, não foi abordada.

Mas não foi só o dossier das permutas que então ficou para trás. O PIP foi aprovado sem que ficasse esclarecido um outro assunto essencial. Para que o edifício possa surgir no gaveto formado pelo início da Av. 5 de Outubro e pela Av. Fontes Pereira de Melo é necessário ocupar algumas áreas cujo subsolo foi cedido em 1995 à empresa Esli (actualmente detida pela Empark) para construção do parque de estacionamento subterrâneo existente em frente à maternidade e ao hotel Sheraton. Além disso é imprescidível a realização de importantes alterações nos acessos a esse parque, um dos quais terá de passar a servir também aos utilizadores do parque subterrâneo que será criado nas caves do futuro edifício.

Sucede que, até hoje, não foi apresentado à câmara qualquer acordo formal entre a Empark e a Edifício 41. E nada foi decidido quanto à alteração das regras do direito de superfície de que a primeira é titular, sendo que essa alteração terá de ser aprovada pelo executivo e pela assembleia municipal.

Entretanto, após a aprovação do PIP, o promotor requereu a aprovação do projecto de arquitectura e o licenciamento da obra. O processo está ainda a decorrer, mas diferentes técnicos camarários têm insistido na necessidade de resolver todas estas questões antes da aprovação do projecto. Algumas delas não são fáceis e correspondem a situações de excepção, senão únicas, em toda a cidade. É o caso das áreas do domínio público municipal, algumas delas de circulação de peões, que terão de ser cedidas à Edifício 41.

Em Agosto, o director municipal de Gestão Patrimonial, António Furtado, chamou a atenção para a necessidade de se “perceber em que termos e condições” é que as permutas serão realizadas, “não ignorando que está em causa a ocupação de subsolo e a intervenção em zonas do domínio público”. O mesmo responsável notou também que “o projecto não é passível de ser concretizado sem o envolvimento da ESLI” e que até então [tal como agora, sabe o PÚBLICO] não existe nenhuma prova da concordância desta empresa.

António Furtado lembrou também que as deliberações camarárias sobre o PIP e sobre os créditos de construção não constituem “título bastante para as eventuais alterações do direito de superfície, nem para as sugeridas permutas de terreno, pelo que, sem a devida regularização patrimonial, não se alcança que esteja preenchido o requisito formal de legitimidade” do promotor.

Apesar destas observações, o assunto parece não preocupar os responsáveis da área do Urbanismo, já que, no início deste mês, a directora do Departamento de Projectos Estruturantes, Angela Ferreira, emitiu um parecer no qual sustenta que “foi a prossecução dos interesses públicos a determinar a consequente ocupação de zonas do domínio público” municipal. “Não fora a opção de atender a tais interesses e a implantação [do edifício] ter-se-ia mantido confinada à área da propriedade privada disponível”, acrescenta.

A mesma directora sustenta que a implantação do edifício foi “arrastada para parcelas do domínio municipal” em resultado de um “compromisso real e de uma verdadeira orientação da câmara municipal, bem como das demais entidades externas envolvidas ma apreciação do projecto”.

Ou seja: como o terreno do promotor não tinha condições para ele lá fazer o que queria, de um modo aceitável para a câmara, esta optou por lhe ceder áreas edificáveis em troco de áreas onde não se pode construir.

No local da obra, a escavação de toda a área de implantação do edifício já está em curso, sem que estejam ultrapassados estes problemas. As paredes de contenção periférica também já estão a ser executadas, havendo trabalhos relacionados com as fundações do prédio que se prolongam para o subsolo de terrenos municipais. Bem à vista, depois das demolições efectuadas, já está igualmente a empena cega (parede lateral sem janelas) de mais de 20 metros de altura que a solução adoptada vai deixar sempre em evidência. O PÚBLICO dirigiu algumas perguntas sobre este assunto à Empark, mas não obteve resposta.

As explicações da câmara
Quanto à câmara municipal, a resposta chegou já depois do fecho da edição em papel desta sexta-feira e vinca que a autarquia "pode aprovar o projecto de arquitectura em simultâneo com as permutas, sendo que o deferimento só pode ocorrer com a transmissão das parcelas". No que respeita ao envolvimento da Esli, a câmara diz que "está a tratar com a Esli/Empark e o promotor das diferentes alterações que têm de ocorrer no direito de superfície e novos acessos ao parque no âmbito da homologação favorável do PIP e da entrada formal do pedido de licenciamento". 

O Departamento de Comunicação do município confirma que a empena cega ficará totalmente a descoberto na Fontes Pereira de Melo, "sendo obrigação do dono da obra [Edifício 41] conferir à empena características de estanqueidade e de isolamento idênticas à de uma parede exterior".  A câmara acrescenta que "autorizou a execução antecipada do projecto de escavação e contenção periférica a pedido dointeressado". Em relação às fundações, afirma que elas "ainda estão em execução, não se tendo atingido as sapatas, sendo que foi autorizada a ocupação do espaço público necessário para parte das escavações". 

De acordo com a mesma resposta "não irá haver quaisquer fundações ou paredes de contenção em áreas que permanecerão no domínio público", subentendendo-se que as necessárias serão transmitidas ao promotor.

Área de construção quase duplicou
Depois de muitas conversas, a câmara, pelo punho de Manuel Salgado, informou em 2011 o então proprietário do terreno que agora está a ser escavado de que só lá poderia fazer um prédio com sete pisos acima do solo e cerca de 13 mil m2 de construção, na soma dos pisos. 

Com uma dívida de perto de 19 milhões de euros ao BES e com o terreno hipotecado a esse banco, o empresário viu-se obrigado a entregar-lhe a terreno. A operação foi feita por intermédio de uma sociedade em que o BES tinha 10%, controlada pelo grupo ECS, a qual criou depois a Edifício 41 para tratar deste negócio. 

Em 2014, quando a câmara aprovou o PIP, os novos proprietários já podiam fazer 17 pisos e um total de quase 23.500 m2 de construção. Segundo a câmara afirmou ao PÚBLICO em Março, esta quase duplicação de área ficou a dever-se a três factores: o PDM aprovado em 2012 permite mais construção e dois regulamentos municipais, publicados no final de 2011 e em 2013, criaram condições para que o novo promotor pudesse chegar aos 23.500 m2, pagando cerca de 2,8 milhões de euros ao município.

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