Guerra ao ISIS? Talvez começar pelo namoro com a Arábia Saudita

1. Se algum estado multiplicou embriões que contribuíram para o “Estado Islâmico” foi a Arábia Saudita. E quem calou e consentiu estava no Texas em 2005 como hoje está em Paris. Em 2005, George W. Bush a beijar o rei Abdullah, de mãos dadas entre as flores. Em 2015, François Hollande e Manuel Valls desdobrando-se em contratos de milhões com o sucessor de Abdullah, a tal ponto que a imprensa francesa falou em “lua-de-mel”. O terror de estado saudita fez bastante pelo estado de terror de 2015, enquanto boa parte do dito “Ocidente” calava e consentia. Obama esfriou o namoro, estendeu a mão ao Irão? Pois a Arábia Saudita achou que teria sempre Paris e sem deixar de cortar cabeças. O poeta e artista palestiniano Ashraf Fayadh, que está preso pelos sauditas há quase dois anos, é só o mais recente condenado à morte por “insultar Deus”, “renunciar ao islão”. Nada disso impediu que os negócios ocidentais com a Arábia Saudita prosperassem, entre armamento e fotos de família. Uma cumplicidade a que nenhum atentado contra alvos ocidentais pôs fim. Ao contrário, foi ver como no pós-11 de Setembro a Casa Branca protegeu o ninho saudita e depois invadiu o Iraque, que não tinha nada a ver com o assunto. Estive lá então, e voltei lá este ano, à “fronteira” que separa o “Estado Islâmico” do Curdistão, agora que a Síria está em ruínas, e o Iraque numa divisão fratricida: é esmagador ver como a força do “Estado Islâmico” veio de todos os erros cometidos desde aí, todos os maus jogos de xadrez. Então, para honrar os mortos e cuidar dos vivos, no luto do que aconteceu em Paris, o pós-13 de Novembro podia começar por aí, acabar este namoro complacente, exercer uma pressão real sobre a Arábia Saudita. Quem defende a vida em liberdade não pode ganhar dinheiro incondicionalmente com estados que fazem do extremismo o seu império, explorando centenas de milhões em África e no Oriente, enquanto se declaram contra o “Estado Islâmico”.

2. Da Bósnia ao Paquistão, o dinheiro do petróleo saudita foi-se materializando em mesquitas, escolas corânicas, centros culturais, sites, jornais, que assim se tornavam frentes avançadas do wahhabismo, a corrente fundamentalista do sunismo imposta na Arábia Saudita. Uma colonização dos espíritos em territórios ultravulneráveis, devastados pela guerra, pela repressão ou pela miséria, prontos a ficar dependentes dessa protecção. Em muitos lugares, a alternativa é estudar nas madrassas pró-sauditas ou não estudar. Os cálculos de quanto foi gasto na exportação do wahhabismo variam entre 100 biliões e o dobro, ou seja, nem se alcança. Paralelamente, acima da arraia-miúda ou nos subterrâneos, passou todo o resto, petróleo, treino e arsenal. Mas não era segredo para ninguém, começando pelo círculo íntimo de Bush, o quanto a Arábia Saudita, através da família real ou de homens de negócios, financiava terroristas. Tanto que a administração Obama alterou as relações com Riad. Entre o material divulgado pela Wikileaks, a então secretária de Estado Hillary Clinton é citada dizendo que “doadores na Arábia Saudita constituem a mais importante fonte de financiamento de grupos terroristas sunitas no mundo”. Ou: “Temos de tomar mais medidas, visto que a Arábia Saudita continua a ser uma base financeira essencial para a Al-Qaeda, os taliban e outros grupos terroristas.” Nesta comunicações, Qatar, Kuwait e Emirados Árabes Unidos também são referidos como apoiando terroristas. Entretanto, rebentou a guerra na Síria, e tanto a Arábia Saudita como aliados ocidentais armaram rebeldes ou supostos rebeldes anti-Assad que se vieram a revelar jihadistas. Tudo isto são embriões do “Estado Islâmico”. Há um ano, o vice-presidente americano Joe Biden disse em Harvard: “Os nossos aliados na região eram o nosso maior problema na Síria. Os turcos eram grandes amigos […] e os sauditas, os Emirados, etc. Que estavam eles a fazer? A dar centenas de milhões de dólares e dezenas de toneladas de armas a quem quer que combatesse Assad. Só que essa gente que estava a ser equipada era da al-Nusra e da Al-Qaeda e de elementos extremistas da jihad vindos de várias partes do mundo.”

3. No relatório sobre o 11 de Setembro, 28 páginas continuam secretas, enquanto ainda se arrasta o inquérito e os familiares das vítimas permanecem na dúvida. Um dos advogados das famílias, Sean Carter, disse em Agosto que “a natureza do apoio dos sauditas à Al-Qaeda continua a ser mantida em segredo, quando é referida num conjunto de documentos classificados”. De acordo com o antigo senador Bob Graham, essas 28 páginas “apontam um dedo muito forte à Arábia Saudita como o principal financiador” do 11 de Setembro. Graham acrescentou recentemente: “A Arábia Saudita não pôs fim ao seu interesse em espalhar wahhabismo extremista. O ISIS é um produto dos ideais sauditas, do dinheiro saudita e de apoio organizativo saudita, apesar de agora eles posarem como sendo muito anti-ISIS.”

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George W. Bush com rei Abdullah em Abril de 2005 e François Hollande com o príncipe Salman bin Abdulaziz no início de 2015 reuters

4. Ensaf Haidar (mulher do blogger saudita Raif Badawi, refugiada no Canadá porque a sua vida corria perigo) diz que “o Governo saudita se comporta como o Daesh [outro termo para ISIS ou “Estado Islâmico”]”. O seu marido continua preso por “apostasia”, ou seja, “renúncia ao islão”. Condenado a dez anos e mil chicotadas, o blogger já foi alvo de 50. É hipertenso, e a mulher teme que ele não sobreviva a nova série.

5. O físico nuclear Yousaf Butt (consultor de segurança nacional, de Harvard a Londres, e comentador frequente, da Reuters ao Huffington Post) escreveu: “É razoável pensar que a Casa de Saud [família real saudita] é simplesmente uma versão mais implantada e diplomática do ISIS. Partilha o mesmo extremismo wahhabi teofascista, a falta de direitos humanos, a intolerância, as decapitações violentas, etc., mas com melhor construção e melhores estradas. Se o ISIS se tornar um verdadeiro estado, ao fim de décadas podemos imaginar que se parecerá com a Arábia Saudita.”

6. E, já depois dos últimos atentados em Paris, um escritor magrebino fez-se ouvir com contundência, num artigo a 20 de Novembro no New York Times, intitulado Saudi Arabia, an ISIS that has made it (Arábia Saudita, um ISIS bem-sucedido). Chama-se Kamel Daoud e tem o peso de ter ganho este ano o Prémio Goncourt/Primeiro Romance. Depois de equiparar Arábia Saudita e ISIS, Daoud resume: “Na sua luta contra o terrorismo, o Ocidente declara guerra a um mas aperta a mão ao outro.” Um “mecanismo de negação” que fecha os olhos às consequências: “O wahhabismo, um radicalismo messiânico que surgiu no século XVIII, espera restaurar um califado fantasioso centrado num deserto, um livro sagrado e dois lugares santos, Meca e Medina. Fundado no massacre e no sangue, manifesta-se numa relação surreal com as mulheres, a proibição de não-muçulmanos atravessarem os territórios sagrados e leis religiosas ferozes. Isso traduz-se num ódio obsessivo da imagem e da representação, e portanto da arte, mas também do corpo, da nudez, da liberdade. A Arábia Saudita é um Daesh bem-sucedido.” Daoud descreve em seguida os efeitos da wahhabização no mundo muçulmano, de como isso distorce o islão e o “Ocidente”. E conclui: “Daesh tem uma mãe: a invasão do Iraque. Mas também tem um pai: a Arábia Saudita e o seu complexo religioso-industrial. Até que esse ponto seja percebido, batalhas podem ser ganhas, mas a guerra estará perdida. Jihadistas serão mortos para renascerem em gerações futuras e formados pelas mesmas cartilhas. Os ataques a Paris expuseram estas contradições outra vez, mas, tal como aconteceu depois do 11 de Setembro, isso corre o risco de ser apagado das nossas análises e consciências.”

7. No mesmo dia, 20 de Novembro, Ben Norton escreveu na Salon que, apesar de tudo isto e do esfriar do namoro, “a administração Obama fez mais de 100 bilhões em negócios de armas com a monarquia saudita em apenas cinco anos”. E, “menos de três dias antes dos ataques de 13 de Novembro em Paris, os EUA venderam 1,3 bilhões de bombas à Arábia Saudita. O regime tem usado estas armas para grupos extremistas no Médio Oriente”. Ao mesmo tempo, os laços entre Paris e a Arábia Saudita (mas também o Qatar) foram fortalecidos com vários negócios. A França é um fornecedor de armas importante, e o petróleo do golfo é importante para a França. A França já é o terceiro maior investidor na Arábia Saudita e quer que os sauditas invistam em França. Há um mês, apenas, o primeiro-ministro Valls foi a Riad com cerca de 200 empresários franceses.

8. Por ter aberto a cena artística saudita ao mundo, a condenação à morte de Ashraf Fayadh, decretada este mês por um “tribunal” saudita, gerou uma indignação alargada, e não apenas no circuito Tate Modern-Bienal de Veneza. Há uma petição de cem criadores árabes de vários países (Iémen, Omã, Egipto, Emirados, Arábia Saudita, Palestina, Iraque, Kuwait, Síria, Argélia, Bahrein, Marrocos, Líbano). Fayadh tem alguns dias para recorrer, mas não pode receber visitas e dificultam-lhe acesso a uma defesa. E na sobreposição de acusações, tanto pode ser morto pelo que alguém interpretou como renúncia ao islão num seu livro de poemas, como por usar cabelo comprido, guardar fotos de mulheres no telemóvel ou ter partilhado um vídeo em que a polícia religiosa saudita chicoteia um homem em público. Claro que a vida dentro do “Estado Islâmico” é ainda pior, e certamente o “Estado Islâmico” não obedece à Arábia Saudita, ao contrário, edipianamente, fez dela mais um dos seus alvos. Mas uma das raízes desta caixa de Pandora jihadista está em Riad, e era bom que a luta pela vida passasse por aí.

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