Silva Carvalho confessa ter mandado espiar telemóvel de jornalista

Antigo dirigente mandou espiar os registos de chamadas de Nuno Simas, que em 2010 era jornalista do PÚBLICO.

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Jorge Silva Carvalho foi ontem ouvido no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa no âmbito do chamado caso das secretas Rui Gaudêncio

O antigo dirigente das secretas Jorge Silva Carvalho confessou esta quinta-feira em tribunal ter mandado espiar em 2010 os registos de chamadas do então jornalista do PÚBLICO Nuno Simas, com o objectivo de descobrir quem lhe andava a passar informações dentro dos serviços. Nuno Simas tinha publicado uma notícia sobre desentendimentos internos nas secretas que não lhe agradara e que considerava incorrecta.

Porém, garantiu Silva Carvalho, a decisão de lhe espiar o telemóvel foi tomada com o conhecimento do seu superior hierárquico Júlio Pereira – que se mantém ainda hoje em funções, como secretário-geral do Serviço de Informações da República Portuguesa (SIRP). Ambos estavam cientes dos problemas legais deste tipo de procedimento, disse também o antigo dirigente das secretas, que responde em tribunal pelos crimes de acesso indevido a dados pessoais, abuso de poder e violação do segredo de Estado. Já Júlio Pereira, que na opinião Silva Carvalho revela “uma enormíssima falta de carácter e uma enormíssima falta de sentido de Estado” depôs neste julgamento na mera qualidade de testemunha.

“Noventa por cento do modus operandi dos serviços de informações é ilegal”, explicou o arguido aos juízes do Campus da Justiça, em Lisboa, acrescentando que é para isso que serve o segredo de Estado: para proteger as operações ilegais das secretas, que não hesitam em "vigiar, fotografar e filmar pessoas" que não são alvo de investigação criminal. Tendo os serviços secretos “fontes de informação em todas as operadoras de telecomunicações desde sempre”, dedicaram-se, por ordem de Silva Carvalho, a “esmiuçar o máximo possível” os contactos feitos pelo jornalista nos dias que antecederam a saída da notícia, e também nos dias seguintes: era preciso “extirpar o cancro”, encontrar o traidor. Os juízes mostraram estranheza por os serviços terem decidido levar a cabo uma operação de tal envergadura para  "apurar a totalidade das fontes" de Nuno Simas, uma vez que a notícia que tinha publicado em nada comprometia a segurança nacional. Mas Silva Carvalho revelou-lhes um princípio básico: uma vez traidor, sempre traidor. Neste ramo de actividade, “a fuga de informação é o medo dos medos”.

E foi, de facto, afastado dos serviços um operacional suspeito de ter falado com Nuno Simas, ainda por cima através do telemóvel de serviço. Depois de a notícia sair, foi a vez de Silva Carvalho ligar ao jornalista, cujo número de telefone lhe foi dado pelo então deputado Miguel Relvas. Disse-lhe que tinha sido manipulado pela fonte de informação. Disso percebia ele, explicou: “Em tese, eu sei como é que os serviços de informações podem usar os jornalistas e controlar órgãos de comunicação social”. Sem revelar nomes, também falou dos “procuradores que ocupam posições nos serviços e informações” e das diferenças entre as investigações das secretas e os processos-crime em tribunal. Estes últimos “sabe-se onde começam e acabam”, enquanto nas secretas nem por isso: “As situações fluem”.

Quando depôs em tribunal, numa das últimas sessões do julgamento, o secretário-geral do SIRP tinha assegurado desconhecer a operação das secretas que deu origem à devassa dos registos de chamadas de Nuno Simas. O seu antigo subordinado diz que se deve por certo ter esquecido de que chegaram até a equacionar apresentar uma queixa ao Ministério Público em vez de “esmiuçarem” os telefonemas do jornalista – uma hipótese que Silva Carvalho diz ter sido imediatamente descartada por Júlio Pereira, que achava ser inútil optarem por essa via. Acabou por se arrepender de ter ido tão longe nas suas críticas ao ex-chefe: “Retiro a parte da falta de carácter. Mas mantenho a parte da falta de sentido de Estado”.

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