No tempo em que os militares faziam a reforma agrária

Nas primeiras horas de uma manhã do Verão Quente de 1975, um grupo de homens acantonou-se numa herdade no Alentejo e envolveu-se numa troca de tiros com trabalhadores que se preparavam para a ocupar. Horas mais tarde, o exército tornava claro que a resistência à reforma agrária era fútil e perigosa.

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Estava escrito nas estrelas que aquela manhã de 15 Julho de 1975 não estava para conservar a rotina da Herdade Sousa da Sé. No dia anterior, José Andrade recebera um telefonema da mãe avisando-o que o pai ouvira falar na ocupação da enorme propriedade da família por parte dos sindicatos agrícolas mobilizados pelo PCP. Depois do aviso, lá para o final da tarde, José Andrade sai de Almeirim no seu Triumph Spitfire descapotável acompanhado por um amigo e desloca-se para a herdade a escassos quilómetros do centro de Évora. Como o fogo num rastilho, a notícia da ocupação espalha-se pelo Ribatejo, de onde os Andrade são originários, e pela noite chegam mais quatro amigos e o irmão de José. O grupo de jovens estava disposto a resistir à ocupação, mas não fazia sequer ideia do custo e da futilidade dessa resistência. “Foi um gesto inconsciente. Estava convencido de que eles nos viam lá e se iam embora”, recorda José Andrade. Não foram, e houve insultos, gritos, raiva, pavor e tiros que fizeram da escaramuça da Sousa da Sé o símbolo da força da reforma agrária e a prova da hegemonia do PCP no Alentejo nesse Verão Quente de há 40 anos.

Aconteceu o que só podia acontecer. Por volta das sete da manhã do dia 15, as informações da mãe de José Andrade provaram ser correctas quando uma fila de camiões e tractores carregados de trabalhadores passaram pelo portão e dirigiram-se à casa da herdade. A ocupação de uma pequena parte da Sousa da Sé tinha começado em Março e o Sindicato Agrícola de Évora, a Liga dos Pequenos e Médios Proprietários e o Centro Regional da Reforma Agrária do distrito tinham concluído que chegara a hora de a expurgar dos latifundiários e de consumar a promessa da terra a quem a trabalha. À frente dos ocupantes seguia o faniqueiro (trabalhador contratado) Grancho, que o pai de José costumava recrutar para serviços sazonais. Atrás, uma legião de operários agrícolas com as suas alfaias.

“Aconselhei-o a ir-se embora”, recorda José. O aviso incendeia a raiva, a raiva promove o insulto e o insulto estimula o ódio e a altercação. Entre os gritos, ouve-se um tiro que atinge um primo do pai de José, Guilherme Gonçalves, 45 anos, e o fere com gravidade. “Depois gera-se o caos. Disparam-se tiros dos dois lados e os ocupantes começam a fugir”, recorda José Andrade, que no final dos anos de 1990 chegou a presidir à Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP). Para lá de Gonçalves, ficou igualmente ferido o trabalhador rural José Augusto Prova, de 43 anos.

Depois do incidente, a paz regressara à herdade. Mas todos sabiam que era uma paz falsa. Dos nove ocupantes da casa, seis ficaram com José e os outros foram levar Guilherme ao hospital. Por volta da uma da tarde, começam-se a avistar ao longe os primeiros movimentos de uma coluna militar que ensaiava o cerco da herdade. “Podíamos ver os soldados a rastejar, aproximando-se de nós”, conta José. Estava tudo acabado. A herdade de 900 hectares, adquirida em 1968 com dinheiro de toda a família para que o pai de José, um veterinário, pudesse cumprir o seu sonho de fazer uma grande ganadaria, esvanecera-se no furor imparável da reforma agrária protegida pela força dos militares de Abril. “Pusemos uma T-shirt branca espetada num pau e rendemo-nos”, conta José. Os ocupantes da casa foram então levados para o Quartel-General em Évora, interrogados até às nove da noite e daí seguiram para Caxias, onde ficaram presos até Setembro. O pai de José, que quisera saber o que se passara junto dos militares, teve o mesmo destino.

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Podíamos ver os soldados a rastejar, aproximando-se de nós… Pusemos uma T-shirt branca espetada num pau e rendemo-nos", recorda José Andrade

Do outro lado da barricada, António Gervásio, um militante histórico do PCP, com 22 anos de clandestinidade e cinco anos e meio de cativeiro, preocupava-se por essa altura em acelerar o ritmo de um sonho que alimentara durante décadas a acção da resistência e o ânimo dos líderes das lutas camponesas do Alentejo. Com 88 anos de idade e uma impressionante frescura física, Gervásio recorda-se do episódio de Sousa da Sé como uma simples vírgula no brilhante texto da reforma agrária, “a mais bela conquista da revolução de Abril”, no dizer de Álvaro Cunhal. “Houve por lá uns tiros, mas era para nos intimidar. Alguns proprietários levantaram cabelo, mas os militares de Abril vieram pôr ordem nisso”, recorda Gervásio.

Mais do que pôr ordem nos agrários, os militares provaram na Sousa da Sé que qualquer acto de resistência dos donos das terras à ocupação era inútil e perigoso. Um comunicado emitido no dia seguinte pelo comando da Região Militar do Sul rapidamente transformado em manchete nos jornais de Évora e Beja controlados pelo PCP tirava as poucas dúvidas que pudessem subsistir: na herdade de Sousa da Sé ocorrera “um acto extremo da entidade patronal, que não hesitou em recorrer ao concurso de elementos vindos de outras regiões com o intuito de entravar a justa luta dos trabalhadores e as decisões emanadas dos órgãos governamentais encarregados da execução da reforma agrária”, explicava. Actos desses, continuava o comunicado, atentavam contra os “legítimos interesses da classe trabalhadora”. Para que a ousadia não se repetisse, o comando militar do Sul avisava: “[O comando militar] estará atento a todas as manobras do mesmo tipo e declara-se disposto a contra elas actuar com toda a firmeza.”

A posição do Exército em favor das ocupações de terras lideradas pelo PCP teve um duplo efeito: serviu para legitimar a ocupação das herdades desde Janeiro de 1975 e criou uma atmosfera propícia ao avanço de novas ocupações. Sousa da Sé era uma lição para os agrários que os defensores da destruição do latifúndio se apressaram a divulgar e capitalizar. O Centro Regional da Reforma Agrária de Évora condenou o “grupo de fascistas e latifundiários” que “atingiram gravemente a tiro um trabalhador agrícola” e lamentou que “a reaccionários da pior espécie seja permitido campo de manobra suficiente para se organizarem contra as medidas decretadas pelo Governo”. O sindicato de Évora alertou para o “grupo de reaccionários” que, “tapado por lacaios, agride e fere camaradas trabalhadores da Liga dos Pequenos e Médios Agricultores” — o ferimento de Gonçalo Gonçalves fora causado “pelo mau funcionamento da arma com que actuava, pois a arma deve ter-se encravado”, na versão do sindicato. O PCP levantou o dedo contra os “facínoras” e o Sindicato dos Profissionais do Comércio e Serviços do Distrito de Évora sentenciou: “Ou nós matamos os fascistas, ou eles matam-nos a nós.” Como corolário lógico desta movimentação, o ministro da Agricultura, Fernando Oliveira Baptista, visitou Sousa da Sé no dia seguinte ao incidente para avisar que qualquer resistência armada às ocupações levaria à expropriação total e sem indemnização dos bens dos agrários.

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Alguns latifundiários deixavam morrer o gado. Outros levavam daqui as máquinas. Eram actos de sabotagem que indignavam as pessoas. E então começou-se a discutir: o que vamos fazer?”, lembra António Gervásio

Perante este colete-de-forças que combinava a política com a coacção das armas, os agrários sofreram uma imponente derrota nesse mês de Julho de 1975. A lei que enquadraria a reforma agrária seria aprovada duas semanas depois de Sousa da Sé e limitava-se por essa altura a ratificar a realidade imposta no terreno pela dinâmica revolucionária. Havia seis meses que, um pouco por todo o Alentejo, as ocupações decorriam sem constrangimentos de maior. O PCP liderava a reforma agrária no terreno, os partidos da extrema-esquerda, com destaque para a UDP, preenchiam pequenos espaços vazios pela apertada organização comunista no Couço ou em manchas de Setúbal, o PS esteve ao lado do processo pelo menos até Novembro de 1975 e, como garantia suprema da revolução nos campos, os militares da Escola de Artilharia de Vendas Novas estavam prontos para dissuadir os mais recalcitrantes. “De manhã, formava-se um pequeno destacamento com jipes que deixava cedo o quartel e ia correr às herdades. Eram verdadeiros revolucionários: levavam boinas à Che Guevara e cartucheiras à volta do corpo. Pegavam nuns trabalhadores, dirigiam-se para uma herdade, deixavam-nos lá e declaravam a herdade ocupada. Num só dia chegaram a ocupar 12 herdades desta maneira”, de acordo com o depoimento de J. Dórdio, citado por António Barreto no seminal Anatomia de Uma Revolução — A Reforma Agrária em Portugal 1974-1976.

Os primeiros capítulos

Se bem que, no final de 1974, fosse já possível prever que as ocupações iriam acontecer mais tarde ou mais cedo, é a 22 de Janeiro de 1975 que o Governo manda intervencionar pela primeira vez uma propriedade agrícola, a Herdade do Monte do Outeiro. Nesse mês, já o sindicato de Beja se dizia pronto a “começar imediatamente a reforma agrária por sua própria iniciativa”, uma forma de superar a “esclerose” e as hesitações do aparelho de Estado. A 9 de Fevereiro o PCP assume definitivamente um plano de acção, organizando com os sindicatos sob a sua influência a 1ª Conferência dos Trabalhadores Agrícolas do Sul, que reúne mais de quatro mil delegados e 30 mil rurais em Évora. No dia seguinte, “realizaram-se plenários para se escolherem as herdades a ocupar e os colectivos para os dirigir”, recorda António Gervásio. “Para nós, era tudo novo”, afirma o histórico do PCP, embora a formação desses colectivos obedecesse a uma prescrição testada noutras latitudes — eram formados por “membros do partido, trabalhadores e sindicatos”.

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A herdade de Sousa da Sé voltou para a família em 1985 num estado de degradação total, segundo José Andrade

Faltava no entanto um argumento capaz de sustentar a pressa do PCP e da legião de trabalhadores sem terra que a cada dia que passava engrossavam as fileiras do partido — no Alentejo, o PCP fica atrás do PS nas eleições para a Constituinte, mas, no ano seguinte, é já o partido hegemónico nos círculos da região. É então que se descobre o motivo para justificar a pressa e acelerar as ocupações: a sabotagem. “Alguns latifundiários deixavam morrer o gado. Outros levavam daqui as máquinas. Eram actos de sabotagem que indignavam as pessoas. E então começou-se a discutir: o que vamos fazer?”, recorda António Gervásio. A pergunta é retórica; as ocupações estavam previamente aprovadas. Uma propriedade de 2049 hectares da família Sousa Lara segue este destino por ter sido “sujeita a uma acção de descapitalização significativa e injustificada, traduzida na venda de todo o efectivo pecuário”; a herdade da Diabrória, em Brissos, com 730 hectares, é ocupada de noite por centena e meia de homens, alguns armados, porque a sua administração tinha decidido vender “um núcleo seleccionado de vacas da raça Devon, único no país”.

Para não perder o passo e deixar a reforma agrária nos braços do PCP, o Estado arma-se com instituições apropriadas para acompanhar o ritmo. Com a chegada de Vasco Gonçalves ao Governo, em Março de 1975, começa a nascer uma rede de organismos pensados para suportar no terreno as ocupações e a dinâmica revolucionária. Fernando Oliveira Baptista, o ministro da Agricultura, manda criar o Instituto da Reforma Agrária, os centros regionais de reforma agrária, entidades inspiradas no modelo chileno de reforma agrária, onde o Estado se sentava ao lado dos sindicatos e das forças armadas, e o Serviço de Apoio e Desenvolvimento Agrário. Em Abril, um projecto de decreto-lei aponta para a expropriação de todas as propriedades com mais de 500 hectares de sequeiro ou 50 de regadio. O ministro tinha em mente “um verdadeiro novo ministério, maduro para a revolução” e num curto espaço de tempo consegue-o. Com o patrocínio do Estado, os centros regionais da reforma agrária juntam-se aos sindicatos para a ocupação, entre Janeiro e Julho, de 256 herdades, correspondentes a 156 mil hectares, onde foram constituídas 25 unidades colectivas de produção (UCP).

Como cerca de metade desta área foi ocupada em Julho, os proprietários perceberam nesses dias turbulentos que o que estava em curso era bem mais do que um devaneio. Nesse mês decidem passar à acção, mesmo sabendo que nem o clima político nem a correlação de forças no terreno estavam do seu lado. A 9 Julho, um grupo de agrários de Odemira liderados pela família Passanha expulsa trabalhadores das suas terras e trava-se de razões com os delegados dos sindicatos; a 14 Julho, 200 agrários tentam invadir o Centro Regional da Reforma Agrária de Elvas; no dia 16, registam-se escaramuças em Reguengos após azedas trocas de insultos entre proprietários e trabalhadores, ou, na terminologia da época, entre latifundiários e operários agrícolas. Depois da intervenção do exército na herdade Sousa da Sé, os proprietários tiveram de esperar pelo 25 de Novembro para poderem, ao menos, protestar publicamente contra as ocupações.

No ambiente do Verão Quente, era difícil questionar as invasões das propriedades, quanto mais travar a luta dos operários agrícolas. Aos olhos do país, o que se passava nos campos do Sul era apenas um ajuste de contas do Alentejo com a sua história. “Para percebermos o que se passou, temos de perceber as situações históricas. Se não, as coisas não encaixam umas nas outras”, adverte António Gervásio. “No Ribatejo, houve mais resistência às ocupações. Havia mais proximidade afectiva entre o patrão e o trabalhador. No Alentejo, a ocupação fazia-se com facilidade. Tem a ver com o modelo fundiário e de exploração. No Alentejo, a mensagem da reforma agrária passou muito facilmente, até porque havia alguma razão de ser nessa mensagem”, nota José Andrade. O que estava em causa era uma espécie de epílogo das lutas dos assalariados contra as más condições de vida no Alentejo, lutas que alimentaram uma permanente rede clandestina do PCP e deram origem a uma brigada de heróis onde se destacam os nomes de Catarina Eufémia, Alfredo Lima e José Adelino dos Santos, mortos pela GNR em protestos a favor de melhores salários.

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No Ribatejo, houve mais resistência às ocupações. Havia mais proximidade afectiva entre o patrão e o trabalhador. No Alentejo, a ocupação fazia-se com facilidade

A conjugação dos resultados dessas lutas com a carência de mão-de-obra provocada pela forte emigração dos anos de 1960 melhoraram as condições de vida dos assalariados agrícolas, mas apenas relativamente. O horário laboral de oito horas conquistou-se em 1962 e o salário diário subiu de 28,79 escudos em 1965 para 70,13 escudos em 1972, de acordo com António Barreto no livro citado. Mas essas melhorias partiram de uma base muito precária. “Eu era operário agrícola, trabalhava onde havia trabalho. Podiam ser dois meses numa herdade ou um fim-de-semana aqui, outro ali. Na entrada da Primavera e antes das sementeiras, entre Agosto e Setembro, era difícil arranjar trabalho. Depois, os trabalhadores agrícolas não tinham direitos nenhuns. Só tinham direito a trabalhar quando houvesse trabalho. Era uma escravatura”, recorda António Gervásio. A promessa de dar “a terra a quem a trabalha” tornou-se facilmente num poderoso factor de mobilização que a máquina bem oleada do PCP soube aproveitar.

Com a lei da reforma agrária publicada em Agosto de 1975, o ritmo das ocupações acentuou-se no segundo governo de Vasco Gonçalves e ainda mais na vigência do VI Governo Provisório, com Pinheiro de Azevedo como primeiro-ministro e o socialista Lopes Cardoso como ministro da Agricultura. Entre Agosto e Dezembro, 3331 herdades, que ocupavam mais de um milhão de hectares, são ocupadas no Alentejo e no Ribatejo. A reforma agrária parecia um processo imparável e o Governo de Pinheiro de Azevedo deu-lhe lastro, ao conceder crédito público para investimento e para o pagamento de salários nas UCP existentes. Nos dois meses do seu mandato, foram ocupados 680 mil hectares de terrenos agrícolas, alargando a mancha da reforma agrária para os aluviões do Sorraia e do Tejo, onde uma classe de agricultores mais profissionais e mais ligados à terra prometiam resistir.

A contra-ofensiva

Em Setembro de 1975, José Andrade, o seu irmão, o pai e os amigos são libertados por um mandato assinado por Otelo Saraiva de Carvalho, que considerava ter ficado provado que os detidos não faziam parte de nenhuma “organização de malfeitores”, a designação que legitimava as prisões políticas do novo regime. Andrade e os seus pares nunca foram julgados e a sua libertação coincide com um aumento da agitação dos médios proprietários ribatejanos perante o alastramento das manchas de ocupações para as margens do Tejo. Em Julho, em Rio Maior, um assalto à sede do PCP e o assalto e destruição dos carros que traziam os jornais de Lisboa servira de aviso sobre os limites territoriais da reforma agrária. Nos meses terminais do Verão Quente, essa cidade voltaria a ser a capital da resistência contra as ocupações de terras. O Tejo era a fronteira definitiva da ambição colectivista.

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Uma reunião da reforma agrária com Lino de Carvalho (segundo a contar da esquerda), do PCP e membro da Comissão Organizadora das 12 Conferências da Reforma Agrária DR

No dia 6 de Novembro, umas centenas de proprietários de Santarém são já capazes de organizar uma manifestação, de desfilar pelas ruas da cidade e de disputar numa batalha de rua o protagonismo aos sindicatos do PCP. O repórter Carlos Soares, do jornal A Luta, esteve lá e contou o que viu. “Nas ruas do centro assistiu-se a um combate corpo a corpo, as montras estilhaçadas, os homens ensanguentados, os carros danificados, os berros, os gritos. Rebenta uma bomba de fabrico caseiro. Disparam-se tiros. De ambos os lados os homens caem feridos. É a lei da selva, a raiva, o descontrolo total.” No final do confronto, que causou dois mortos e 19 feridos, os agricultores ocupam uma rádio local e forçam a leitura de um comunicado dizendo que “o povo não está com o MFA”.

A mudança definitiva do vento da reforma agrária (como do ardor revolucionário) aconteceria na noite de 24 para 25 de Novembro de 1975, quando os agricultores mobilizados pela novel Confederação dos Agricultores de Portugal, dirigida por um jovem técnico agrário ambicioso e destemido, José Manuel Casqueiro, se articulam com o coronel Jaime Neves e bloqueiam as estradas e as linhas ferroviárias para evitar qualquer avanço de tropas para a capital — o maior receio eram os pára-quedistas de Tancos. “Naquela noite havia um claro ambiente de resistência. A maioria silenciosa era uma realidade. As pessoas que chegavam às barricadas, por muito que os bloqueios alterassem as suas vidas, encorajavam-nos na nossa luta. Ficavam felizes por nos ver ali a bloquear a estrada. Foi estranho, mas reconfortante. Foi um momento especialmente crítico, que alterou de forma fundamental a dinâmica revolucionária”, recorda José Andrade, que participou no bloqueio.

Com a eleição do primeiro Governo Constitucional, em Abril de 1976, a reforma agrária entra em recuo também na política. Em Abril, José Andrade estava na Assembleia da República, depois de ter sido eleito nas listas do PSD, e participa já na decisão de impor por lei o perímetro máximo das ocupações, com a criação da Zona de Intervenção da Reforma Agrária. E em Outubro António Barreto substitui Lopes Cardoso no cargo de ministro da Agricultura com a promessa de que o Alentejo não será a Sibéria. A sua famosa lei de bases da Reforma Agrária, de Agosto de 1977, consolida a inversão da tendência, acabando na prática com a possibilidade de novas ocupações e instituindo indemnizações e a devolução aos proprietários das propriedades ocupadas que não cumprissem as condições da lei. O nome do ministro, completado com um catálogo infindável de acusações e de insultos, tingiu as paredes do país, mas Barreto ainda hoje manifesta o seu “orgulho” pela legislação que ficou para a posteridade associada ao seu nome.

E é assim que, lenta, mas irreversivelmente, as herdades começaram a ser devolvidas aos seus proprietários. Entre 1977 e 1983, porém, a resistência dos ocupantes e a força do PCP ainda eram suficientemente temíveis para congelar a vontade política expressa na lei. Pouco se avançou na devolução de propriedades. Num dos muitos episódios de resistência desse tempo, a GNR abateu a tiro António Manuel Casquinha, de 17 anos, e José Geraldo “Caravela”, quando lutavam contra a desocupação da UCP Bento Gonçalves, em Setembro de 1979. Mas depois de Cavaco Silva chegar ao poder e de as exigências da integração europeia excluírem a possibilidade da colectivização, as entregas das herdades aos seus donos acelerou de forma irreversível.

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O meu pai recebeu a herdade com desgosto. Andei a pé com ele a arrebanhar o gado. Foi cansativo e triste. Fizemos um enorme esforço de reinvestimento

A família Andrade recebe de volta a Sousa da Sé em 1985. Mas já não era a herdade que conheceram. “As canalizações de água não existiam, as cercas estavam partidas, a casa era um bar, o gado estava todo misturado e havia muito menos cabeças, as máquinas estavam avariadas. Era uma degradação total”, diz José Andrade. “O meu pai recebeu a herdade com desgosto. Andei a pé com ele a arrebanhar o gado. Foi cansativo e triste. Fizemos um enorme esforço de reinvestimento”, acrescenta José Andrade. Depois da morte do pai, o irmão, que a recebeu como herança, vendeu-a ao filho do empresário Sousa Cintra. Anos mais tarde mudou de mãos novamente para se transformar numa unidade turística. Hoje, o seu ar sugere abandono, com o portão encerrado, o amarelo da paisagem natural a impor-se e a deixar a nu o esboço de uma estrada que, como tantas obras paradas no Alentejo, nos transporta para o tempo das empreitadas que a crise de 2011 suspendeu por tempo indeterminado.

António Gervásio olha agora para o passado e reconhece que a luta da sua vida ficou incompleta. Nem todas as terras foram ainda devolvidas aos donos — na Herdade dos Machados ainda há lotes nas mãos de rendeiros e na Herdade do Pinheiro o litígio sobre a devolução chegou ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que em 2013 condenou o Estado a pagar uma indemnização de 1,5 milhões de euros aos proprietários; aqui e ali subsistem vestígios desse tempo em que a promessa da terra a quem a trabalha se vivia no quotidiano dos campos ou nas ondas da rádio através de um programa com esse nome que a Emissora Nacional emitia todos os dias às sete da manhã; em Montemor-o-Novo há ainda uma loja de venda de produtos agrícolas e pecuários chamada “Caminhos do Futuro”. Vestígios desses são apenas reminiscências diluídas na memória de um tempo agressivo e turbulento, mas, apesar de tudo, pouco sangrento — a ocupação de quase 1,2 milhões de terras fez-se de forma razoavelmente pacífica, apesar do incidente de Sousa da Sé, da manifestação de Santarém ou do confronto com a GNR em Setembro de 1979 do qual resultaram dois mortos.

Gervásio, o velho militante do PCP que nos seus tempos de clandestinidade chegava a fazer dois mil quilómetros de bicicleta por mês a espalhar notícias da luta e a organizar acções de resistência, o operário agrícola que aprendeu a ler na cadeia, que sofreu a tortura da PIDE e fez parte do grupo que fugiu de Caxias numa ousada aventura que envolveu um carro blindado que Hitler tinha dado a Salazar, revê a história e considera que estamos apenas perante um parêntesis. “A terra não é de ninguém; é de todos. Com a reforma agrária, o Alentejo seria mais florescente e mais bonito. O que temos agora? Vinho e oliveiras dos espanhóis e o Alentejo despovoado. Portugal democrático precisa de uma nova reforma agrária. No dia em que Portugal construir um Portugal democrático, isso é posto a andar. A reforma agrária é uma exigência inadiável. Vai haver tarde ou cedo uma nova reforma agrária. A História não pára.”

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