Mais de 400 mil crianças sírias não vão à escola na Turquia

A guerra empurrou milhões de pessoas para fora da Síria e do seu sistema de ensino. Ancara quer metade dos refugiados na escola até ao final do ano lectivo.

Foto
Refugiados sírios em Istambul: a situação é pior para quem vive nas cidades, fora dos campos de refugiados BULENT KILIC/AFP

Mais de dois terços das 708 mil crianças sírias que estão na Turquia, como refuguadas, não vão à escola, apesar de a lei turca lhes dar esse direito e de estarem em idade da escolaridade obrigatória, conclui a organização humanitária Human Rights Watch, num estudo publicado nesta segunda-feira. É um número que representa cerca de 415 mil crianças e jovens sírios, entre os sete e os 17 anos, refugiadas na Turquia pela guerra e fora do sistema de ensino.

Há várias barreiras para a entrada de crianças sírias nas escolas turcas. São sobretudo entraves de ordem social, económica, ou de inclusão social e educativa. O problema atinge predominantemente os sírios que estão fora dos campos de refugiados, 85% dos mais de dois milhões de cidadãos sírios fugidos da guerra no país vizinho – 90% dos jovens em campos na fronteira da Turquia com a Síria vão a escolas especiais com currículos sírios em língua árabe, mas apenas 25% dos que estão nas zonas urbanas o fazem.

Na Síria do pré-guerra, 99% das crianças cumpriam a escola primária e 82% matriculava-se nos primeiros anos do ensino secundário. Na Turquia, o país em que vivem mais refugiados sírios, há quatro anos de escolaridade obrigatória de ensino primário, outros quatro de ensino intermédio e mais quatro de ensino secundário.

Ao não haver garantia de ensino para as crianças e jovens sírias deslocadas pela guerra, os países de acolhimento arriscam-se a criar uma população alienada, que corre para a radicalização ou para a morte, como diz Shaza, mulher síria à frente de um centro de educação em Istambul. O seu filho, Omar, regressou à Síria e juntou-se a um grupo rebelde depois de não ter conseguido entrar numa escola na Turquia, para onde fugiu da guerra. Morreu com 16 anos a lutar contra o exército do Presidente Bashar al-Assad.

“Se uma criança não for à escola, terá grandes problemas no futuro. Acabaránas ruas, ou regressará à Síria para morrer em combate, ou será radicalizada por extremistas, ou morrerá no oceano a tentar chegar à Europa”, diz Shaza à Human Rights Watch.

Lei prevê ensino a refugiados

Em teoria, Ancara deu um salto qualitativo nas suas leis de protecção de refugiados sírios em 2014, com alterações para permitir o acesso ao sistema universal de educação. Isto apesar de não os reconhecer formalmente como tal – a Turquia é o único país-membro da convenção internacional de refugiados de 1951 que mantém o seu texto original e que, por isso, pode apenas considerar cidadãos europeus como refugiados. Em Abril, alterou a sua lei de imigração de forma a conceder autorizações formais de residência aos cidadãos sírios em seu território e assim permitir-lhes viver fora dos seus 25 campos de refugiados. Mais tarde, o Executivo turco reconheceu oficialmente o direito a cuidados de saúde, acomodação, educação e outros serviços e apoios do Estado a todos os estrangeiros sob a protecção do país.

As reformas na lei de imigração e de residência de estrangeiros na Turquia permitiram que as crianças e jovens sírios pudessem entrar no sistema de ensino público turco com um cartão de “identificação de estrangeiro”, um documento acessível a todos os sírios no país. Estavam criadas as condições para que todas as crianças e jovens sírios na Turquia pudessem entrar no sistema de ensino.

Na prática, porém, escreve a Human Rights Watch, há uma série de entraves à ida de crianças sírias à escola. Em primeiro lugar, há várias escolas públicas em que continuam a não ser admitidos cartões de identificação de estrangeiros como documento válido, sobretudo em zonas mais rurais. Para além disto, o sistema de ensino turco tem apenas aulas em turco e não em árabe, a língua oficial e predominantemente falada na Síria. Algumas das 50 famílias sírias entrevistadas pela organização humanitária disseram que os estabelecimentos não conseguiram integrar as crianças ou simplesmente que não sabiam que era permitido às suas enviá-las à escola.

Pobreza como barreira

Mas há um problema de fundo mais grave. A incapacidade económica é um dos entraves mais comuns à ida das crianças sírias na Turquia à escola. Os cidadãos sírios não têm autorização para trabalhar no país – Ancara teme que as centenas de milhares de sírios façam aumentar o desemprego, embora também não seja ilegal terem um emprego. Num limbo legal, o trabalho na Turquia para muitos refugiados é frequentemente mal remunerado. As crianças trabalham para compensar esta falta de dinheiro.

Nisreen é uma síria de 28 anos na Turquia, viúva e mãe de quatro crianças. “Não temos dinheiro, por isso os meus três filhos mais novos não estão na escola”, disse à Human Rights Watch. “O centro [temporário de educação] mais próximo é demasiado caro: cada criança paga 22 dólares por mês pelo autocarro. Não temos dinheiro para isso. O meu filho mais velho trabalha como mecânico, mas a nosso rendimento é de 81 dólares por semana.”

Os centros temporários de educação são os únicos na Turquia com um currículo em árabe especialmente concebido para as crianças sírias. Existem dentro e fora dos campos de refugiados e têm um programa preparado em parceria com o Governo de Ancara e o governo Interino da Síria, a organização-mãe do grupo de oposição a Assad exilado na Turquia e apoiado pelo Ocidente (Coligação Nacional da Síria). É em muito semelhante ao que é ministrado ainda em Damasco, embora lhes sejam retiradas as referências à família Assad e ao Governo sírio.

Mas estes centros existem em apenas 19 das 81 províncias turcas e os refugiados estão espalhados por todo o país. Para além do mais, alguns destes centros são geridos por organizações privadas que cobram taxas de transporte e de ensino que podem atingir as dezenas de dólares mensais. 

Sugerir correcção
Ler 2 comentários