Começou o julgamento do gang de Carminati, o “último rei de Roma”

O crime organizado está sempre a mudar. O bando designado por “Mafia Capitale” ligava bandidos, empresários e políticos e o seu principal negócio era o saque de fundos públicos, até dos refugiados

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Massimo Carminati tem hoje 57 anos DR

Começou na quinta-feira, em Roma, o julgamento do megaprocesso da “Mafia Capitale”, uma vasta rede criminosa que envolve bandidos, empresários e políticos, qualificada como “gangrena” do município romano. Entre os 46 réus, destaca-se a figura lendária de Massimo Carminati, de 57 anos, o chefe, preso no dia 2 de Dezembro de 2014 e a quem os amigos chamavam “o último rei de Roma”. É um antigo terrorista neofascista com largo cadastro criminal. O julgamento, com centenas de testemunhas, durará até ao Verão.

O bando dedicava-se a actividades como a extorsão de empresas e a usura com uso de violência, a gestão do lixo ou de espaços verdes municipais, além de corrupção, falsificação de contratos públicos e branqueamento de dinheiro. Um dos mais rentáveis negócios era o dos imigrantes e refugiados: gerir campos ou albergues e apropriando-se de fundos estatais e europeus.

“O mundo do meio”
A acusação qualifica a actividade do bando como “mafiosa”, à imagem da Cosa Nostra siciliana, da Camorra napolitana ou da ‘Ndranghetta calabresa. O procurador Giuseppe Pignatone tentará provar que “uma pequena organização, de que Carminati é o chefe”, conseguiu infiltrar a administração pública e estabelecer laços entre o mundo do crime e o mundo político. O procurador diz tratar-se de “uma organização criminal romana, original e autóctone”, qualificando-a como “uma máfia nova”. Afirma: “Menos poderosa militarmente do que as outras, (...) é mais lacerante e invasiva, usando métodos mafiosos para intimidar e condicionar as decisões políticas.” A defesa contraditará esta qualificação, que implica penas muito mais elevadas para os condenados.

O braço direito de Carminati, Salvatore Buzzi, era o patrão de uma cooperativa que trabalhava para o município romano e servia de elo com o mundo político. Riccardo Brugia, antigo companheiro de Carminati no “terrorismo negro”, era o “braço armado”, responsável pela extorsão, pela usura e pelas armas. Outro “colaborador” era Luca Odevaine (em prisão domiciliária), um alto funcionário de esquerda que teria desempenhado um papel fundamental na corrupção para obter contratos de campos de refugiados.

Há no banco dos réus gente de todos os quadrantes. Luca Gramazio foi chefe da bancada de Berlusconi no Conselho Comunal de Roma. Mirko Coratti era militante do Partido Democrático e foi presidente do mesmo conselho.

O pós-fascista Gianni Alemanno, antigo ministro de Berlusconi e ex-presidente da Câmara de Roma, está em liberdade e não será acusado de participação no bando, mas de corrupção. “Fechava os olhos”: o seu gabinete era uma placa giratória para a “Mafia Capitale”.

Conhecendo a política e o mundo do crime, o negócio de Carminati era conjugá-los. Explicou num telefonema a Buzzi, interceptado pela polícia: “Em cima estão os vivos [políticos e empresários], em baixo os mortos [mundo do crime] e nós no meio. É o mundo em que todos se encontram. Seria possível jantar com Berlusconi? É possível no mundo do meio. Todos se cruzam lá. Quem está no mundo de cima tem interesse em falar com o submundo.”

Segundo o seu advogado, desta vez, Carminati “vai falar”. É uma ameaça.

Il Nero
Carminati é uma “lenda negra”. Nasceu em Milão numa família de classe média que se mudou para Roma. Jovem estudante, entrou na organização terrorista neofascista Núcleos Armados Revolucionários, pela mão do seu colega de escola Valerio Fioravanti, que dele disse: “Era alguém que não aceitava os limites de uma vida sem perigo, pronto a sequestrar, matar, roubar.” Depressa se tornou numa figura carismática do grupo. Durante os “anos de chumbo”, o “terrorismo negro” (extrema-direita) precedeu o “terrorismo vermelho”. Ambos ensaguentaram a Itália. Carminati esteve ligado a conspirações e atentados com centenas de mortos. Era um killer frio e culto, fascinado pela mitologia grega. Participou em assaltos a bancos e no tráfico de droga. Teve laços com os serviços secretos.

Fez de ponte entre o terrorismo e o mundo do crime. Entrou na “Banda della Magliana”, o gang que dominou a malavita romana nesses anos: inspirou a figura de “Il Nero” ("o Negro") no livro Romanzo Criminale, do juiz Giancarlo de Cataldo, e na série televisiva Roma Criminal (exibida em Portugal em 2012). Chamavam-lhe “il Guercio” (zarolho), por ter perdido uma vista num confronto com a polícia. Muitas vezes preso, foi condenado em 1998 e libertado em 2006. Depois desapareceu. E inventou a “Mafia Capitale”.

É casado e tem um filho. Os telefonemas interceptados revelam um pai atento e um marido afectuoso. Mas algo frustrado enquanto bandido. Confessa num outro telefonema a Buzzi: “Digo-te a verdade: sou um bandido rico, mas tenho dificuldade em gastar o dinheiro porque senão apanham-me.”

Não se sabe onde escondeu os seus muitos milhões. Talvez em Londres. Coleccionava relógios de luxo. E tinha uma pinacoteca secreta, que a polícia apreendeu: de Picasso a Keith Haring, de De Chirico a Pollock ou Andy Warhol.

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