“Façam com as cinzas o que quiserem”

As cerimónias “são para os vivos”, dizia Brian, ateu. E os vivos que Brian deixou não deixaram de ter a sua cerimónia de despedida, mesmo sem enterro, ao som de jazz. Já o corpo de Maria Ângela, católica, foi velado, e houve missa antes de uma viagem de 240 quilómetros para ser cremado.

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Diogo Baptista

Dizia que quando morresse deviam agarrar no corpo dele e “pô-lo no caixote do lixo porque aquele corpo já não era ele”. Havia anos que Brian tinha uma insuficiência cardíaca que ia controlando com a medicação inovadora que estava a tomar no âmbito de um ensaio clínico. Mas como conta o seu companheiro de longa data, José Maia, a certa altura os medicamentos passaram a ter efeitos secundários. A saúde dele foi-se deteriorando. Morreu com 68 anos. José guarda as cinzas de Brian na casa onde viviam, no Porto. Mas é para a “casa de montanha” que a família tem no Gerês que as vai levar um dia destes. “Ele gostava de lá passar fins-de-semana e gostava de um dia poder lá viver... de maneira que é lá.”

Nunca combinaram as coisas assim, com este detalhe — há quem antes de partir explique ao pormenor o que quer que aconteça com o seu corpo, há quem deixe escrito. “Que o meu caixão vá sobre um burro/Ajaezado à andaluza.../A um morto nada se recusa,/E eu quero por força ir de burro!” (Mário de Sá-Carneiro em Fim). Mas Brian não se alongava nessas conversas sobre o que havia de acontecer quando partisse.

“Ele era bastante ateu. Não gostava muito de falar nisso, dizia mais ou menos na brincadeira que era para deitar ao lixo, eu dizia que ao lixo não mandava mas que mandaria cremar”, conta José. “Porque... enterrar para quê? Quando a minha mãe morreu foi enterrada. Durante uns meses eu ia visitar a campa e levar flores. A certa altura comecei a espaçar as minhas idas. E depois deixei mesmo de ir e comecei a ter problemas de culpa por causa disso. É estúpido. A pessoa já não está lá. A memória das pessoas está connosco. Está todos os dias”, independentemente das visitas ao cemitério.

Já quando se entrega “as cinzas às cinzas” não se coloca essa questão, continua. Não se deixa essa “obrigação” de visitar um corpo a nenhum dos sobrevivos. Poupa-se na culpa.

Despedidas
As cerimónias “são para os vivos”, dizia Brian. E os vivos que Brian deixou não deixaram de ter a sua despedida. Brian morreu depois de três semanas, quase um mês, em estado terminal. O caixão foi levado do hospital para o crematório. José convidou amigos, ex-alunos de Brian e família a estarem presentes. “Um casal nosso amigo levou um computador, que colocou junto ao caixão, e um powerpoint, que pôs a passar, com fotografias do Brian. E pusemos música — ele gostava muito de jazz... As pessoas iam chegando e as fotografias iam passando.”

Prossegue José: “Optei por deixar o caixão fechado, não havia justificação para as pessoas verem um corpo morto, achei que deviam ficar com a memória dele vivo... Depois, a certa altura, alguém veio dizer que precisavam fazer seguir o corpo para cremar, porque havia mais à espera. E eu agradeci às pessoas todas que tinham vindo e saímos.” As cinzas foram-lhe entregues alguns dias depois, o agente funerário tratou de tudo.

“É mais limpo e menos doloroso. Acho que o funeral, a terra a bater no caixão, é algo degradante. Já disse aos meus filhos que se eu partir, entretanto, quero ser cremado também, não me levem para a terra. Com as cinzas façam o que quiserem, não tenho preferência”, diz Paulo Cabral, que vive em Portimão. Perdeu a mãe há cerca de um mês. Maria Ângela tinha 85 anos.

Já tinha manifestado a Paulo a vontade de ser cremada. Quando o cancro nos ossos, associado a um problema respiratório, a debilitou muito voltaram a falar do assunto. “Estávamos todos à espera que o dia chegasse e voltei a questioná-la para ter a certeza. Disse que sim e cumpriu-se a vontade dela”, conta.

Recentemente dois amigos de Paulo haviam perdido familiares que tinham acabado por ficar vários dias à espera de marcação no crematório. Paulo não desejava nem prolongar a espera pela despedida da mãe nem submeter o corpo a dias e dias numa morgue. “No Algarve não há crematório”, conta. “No caso desses meus amigos, os familiares foram cremados em Ferreira do Alentejo. A mãe de um deles esteve quase uma semana à espera. Não queria isso. Quando fui à agência funerária disseram-me que quase de certeza arranjariam marcação para o dia seguinte, mas só se fosse no crematório de Setúbal. E eu disse: 'Nem que fosse em Coimbra. Ou no Porto!'”

Numa sexta-feira foi o velório, numa capela de Portimão — “Agora as capelas abrem a uma dada hora e fecham a uma dada hora, não há aquilo de as pessoas se sentirem obrigadas a ficar toda a noite a velar, é muito mais adequado aos dias de hoje”. E no sábado houve missa, conta Paulo. Seguiu-se uma viagem de mais de 240 km para Setúbal. “À hora marcada, estávamos no crematório.”

O que diz a Igreja?
Maria Ângela era católica. Não há, na sua vontade expressa de ser cremada, nenhuma contradição. “A Igreja prefere que se conserve o costume tradicional de sepultar os corpos dos cristãos, porque com este gesto se imita melhor a sepultura do Senhor. Os fiéis têm, contudo, a liberdade de preferir a cremação do seu próprio corpo, sem que esta escolha impeça a celebração dos ritos cristãos”, lê-se no novo Ritual das Exéquias, publicado em 2006 e que incluiu um capítulo especialmente orientado para o caso em que se faz a cremação do cadáver.

“Neste caso, os ritos previstos para a capela do cemitério ou junto da sepultura podem realizar-se na própria sala crematória, se não houver outro lugar apto”, acrescenta-se. Pode permitir-se também que a cremação tenha lugar antes dos ritos exequiais. “Neste caso, o rito, mesmo com a missa exequial, pode celebrar-se perante a urna com as cinzas.”

O pai de Paulo já explicou o que se passará a seguir: a campa da mãe de Maria Ângela está em Sangalhos, e as cinzas de Maria Ângela, por agora em Portimão, deverão juntar-se às da progenitora. Quando ele morrer, o seu corpo deverá ser cremado e as suas cinzas juntar-se-ão às da mulher e da sogra. “Vamos tentar trasladar os ossos do meu avô e do meu irmão mais velho, que estão num jazigo em Coimbra neste momento, também para lá”, explica Paulo.

O primeiro passo para reunir em Sangalhos os mortos da família, actualmente dispersos pelo país, começa já neste fim-de-semana. “O meu pai e o meu irmão vão levar as cinzas da minha mãe para o jazigo em Coimbra. Seguir-se-á o início dos pedidos de autorizações para mudar para a campa em Sangalhos.”
A escolha da última morada tem, por vezes, alguma dose de burocracia.

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