A gigante, incerta e secreta viragem económica dos EUA para a Ásia

O acordo de comércio livre assinado entre os Estados Unidos e 11 países do Pacífico é a grande jogada económica de Obama para contrariar a galopante afirmação da China na região. Mas Washington arrisca graves prejuízos sociais a troco de pouco sucesso político.

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Fábrica em Hanói, no Vietname Kham/Reuters

O acordo da Parceria do Trans-Pacífico, ou TPP, como ficou conhecido, é simultaneamente o maior projecto de livre comércio das últimas décadas e a grande jogada de poder dos Estados Unidos na Ásia.

Começou a ser negociado em segredo há cinco anos, mas só na última segunda-feira é que os 12 países signatários chegaram a acordo. Juntos, representam 40% de toda a riqueza no mundo e um quarto do comércio global. No melhor dos casos, este acordo de livre comércio pode ser um importante motor de transformação democrática na Ásia, de protecção do ambiente no Pacífico e de prosperidade para a região. Mas o contário é também possível.

Tudo depende de como será posto em prática o texto final. Ninguém o conhece ainda, uma vez que o TPP foi negociado à porta fechada. O que se sabe hoje vem de resumos publicados na última semana por governos signatários, de fontes governamentais também elas secretas e de uma fuga de informação que revelou um dos 30 capítulos do acordo. Este secretismo não é novo. Desde 2002 que é prática habitual quando estão em causa acordos comerciais entre os Estados Unidos e outros países. Os governos argumentam que a confidencialidade é necessária para proteger as suas posições negociais e para se isolarem da contestação social antes de o acordo estar preparado. O irmão europeu do TPP, o TTIP, está ainda a ser negociado – espera-se que o processo avance agora mais rápido –, mas a Europa comprometeu-se a publicar o seu lado das negociações.

O secretivo TPP deixará de ser secreto em breve. O documento será publicado ainda este mês, segundo escreve o New York Times. A partir dessa data, cada um dos 12 países tem dois anos para o rever e aprovar, ou rejeitá-lo e ficar de fora. Nos Estados Unidos, por exemplo, o Presidente Barack Obama terá de esperar dois meses depois de o acordo ser público antes de o assinar e enviar para o Congresso. Uma vez lá, os representantes norte-americanos têm três meses para o aprovar. Ou mais, se pedirem um prolongamento. Haverá consulta democrática da proposta, ao contrário do que dizem os críticos mais assertivos do acordo.

A verdade, porém, é que o processo de negociação do TPP foi opaco. As grandes empresas tiveram mais acesso aos meandros das negociações do que congressistas norte-americanos, organizações laborais ou de protecção do ambiente. Nem todas ficaram satisfeitas com o resultado final, mas, como escreve o Financial Times em editorial, a confidencialidade do TPP serviu principalmente para alimentar o cepticismo em relação a um novo acordo de comércio livre – já de si uma estratégia económica contestada. “O nível de secretismo sob o qual foi conduzido foi auto-destruidor. A falta de transparência alimentou a desconfiança, o que contribuirá para o difícil caminho que o pacto tem de atravessar.”

Mudar as regras do jogo

A proposta do TPP quer o fim, imediato ou gradual, de cerca de 18 mil tarifas e limites nacionais à importação de bens. Nos países mais desenvolvidos há receios de que isto permita às grandes empresas abrirem unidades de produção no estrangeiro, onde a mão de obra é mais barata – um dos signatários é o Vietname, onde os trabalhadores recebem muito menos do que na China, por exemplo. Outro temor é o de que a entrada de produtos mais baratos, especialmente no sector agrícola, prejudique os produtores nacionais.

No Japão, o primeiro-ministro Shinzo Abe tem por diante o poderoso lobby agrícola. Está a conseguir a custo convencê-lo – ao mesmo tempo desmembrando-o com nova leislação – de que o Estado consegue compensar a entrada de arroz mais barato com os ganhos no sector automóvel e que o acordo do trans-pacífico pode ser a chave parra o fim de décadas de estagnação económica. No Canadá, onde estão agendadas eleições para o próximo mês, a maior resistência vem dos produtores lácteos, preocupados com a entrada em jogo da Nova Zelândia.

Mas o mais ambicioso do TPP está para além da política de comércio de portas abertas. O acordo quer harmonizar leis laborais, ambientais e de protecção dos direitos de autor e de propriedade intelectual pelos 12 países. Aqui surge a grande influência dos Estados Unidos: a harmonização é feita tendo por base a lei norte-americana, e não a de outros países. E é aqui também que jaz a incerteza sobre se o TPP será no futuro um mecanismo de criação de prosperidade ou de desigualdade económica. 

Todos os países têm de obedecer aos tratados da Organização Mundial do Trabalho (OMT). O acordo sublinha especificamente que devem ser respeitadas acima de tudo as provisões sobre “a liberdade de associação e direito a negociações colectivas, eliminação do trabalho forçado, abolição do trabalho infantil” e o fim da “discriminação no trabalho”. É algo que parece escrito directamente para países como o Vietname, Malásia e Brunei, os mais pobres no tratado e os que mais preocupações levantam na protecção dos direitos humanos.

Algo de semelhante para o campo ambiental: os 12 signatários têm de cumprir com as obrigações do tratado para o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e Flora Selvagem Ameaçadas de Extinção, ou CITES, assim como agir contra a sobrepesca, proteger a camada do ozono e os mares da poluição marítima. Para o garantir, e Obama promete que o fará, cada membro tem um comité especial que pode suspender a participação de um país no TPP ou aplicar-lhe multas.

Mas nada garante que o façam. No campo oposto, o empresarial, o acordo de livre comércio contempla a criação de tribunais especiais, ou ISDS, na sigla em inglês, que vão julgar fora do sistema judicial de cada país casos em que empresas multinacionais se sintam injustiçadas por alguma legislação que prejudique os seus lucros esperados. As empresas tabaqueiras estão proibidas de os usar, por insistência da Austrália, que neste momento enfrenta um processo desta natureza da autoria da Philip Morris (Marlboro) por proibir a venda de tabaco em embalagens com a marca dos cigarros.

Um dos protestos mais sonoros faz-se contra as leis sobre a propriedade intelectual. O exemplo mais gritante acontece com a indústria farmacêutica, que fez pressão para que os Estados Unidos impusessem no TPP um período de 12 anos de potecção para os seus produtos, impedindo que nesse período se repliquem medicamentos genéricos muito mais baratos. É um debate com vários anos em Washington e que passou, pelo menos em parte, para o acordo de livre comércio. O TPP exige um período mínimo de cinco a oito anos de protecção à indústria farmacêutica, como é já prática na maior parte dos países signatários. No entanto, apesar de estabelecer um mínimo, não se aplica um máximo. Os Estados Unidos podem continuar a exigir 12 anos de protecção no seu país e os outros países estão impedidos de baixar o seu limite no futuro. Washington venceu a batalha nos direitos de autor para outras indústrias, como a música e o cinema.

Frente contra a China

É ao mudar as regras do jogo que os Estados Unidos se querem impôr na Ásia e contrariar o poder chinês. “Se não escrevermos as regras, será a China a escrever”, disse Barack Obama. O seu chefe militar, o secretário da Defesa, Ash Carter, que está a reposicionar as peças militares no Pacífico com os olhos postos na China, pôs a importância do TPP noutros termos. “É tão importante para mim como um novo porta-aviões.”

Isto porque qualquer sucesso económico que Obama pode esperar colher do TPP contra a China será sempre limitado. Apesar da retórica norte-americana, da plausível imposição de regras mundializadas de comércio e até da possível, embora não garantida, mudança de algumas das opacidades democráticas em países como o Brunei, a Malásia e o Vietname, os Estados Unidos não devem esperar que a galopante afirmação da China no Pacífico seja efectivamente contida com este pacto económico. Pelo menos não de uma forma transformadora.

Pequim avança com os seus próprios acordos de livre comércio na região, como a Zona de Comércio Livre na Ásia-Pacífico, ao qual se soma o planeado Banco de Investimento para as Infraestrutura Asiática. Os laços económicos que ligam Pequim aos seus parceiros regionais são mais fortes e incontornáveis do que as relações destes com os Estados Unidos. Mesmo num momento de desaceleração, a China cresce a um ritmo muito maior do que o da esmagadora maioria dos países industrializados. E é a Pequim, não Washington, que a maior parte dos países no Pacífico deve uma fatia importante da sua dívida externa.

A China não sairá isolada pelo pacto, que, aliás, deixa a porta aberta à sua participação. “Ninguém vê o TPP como uma alternativa para a China”, explica Bilahari Kausikan ao New York Times. Antes um alto-responsável na diplomacia de Singapura, Kausikan dá a perspectiva asiática ao acordo: “Os Estados Unidos são importantes e a China é importante. Somos capazes de fazer as coisas simultaneamente. A China é um factor económico gigante que não pode ser posto de lado.”

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