Os zombies da TV "são o Estado Islâmico, o ébola, as forças negras do planeta..."

Nas filmagens de The Walking Dead, procuramos o motivo pelo qual os seus vivos e os seus mortos-vivos são tão populares. Andrew Lincoln, Greg Nicotero e Tovah Feldshuh dão uma ajuda.

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Em The Walking Dead, o inferno são os outros humanos, mas a ameaça primária são os zombies GENE PAGE/AMC
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Daryl Dixon, a breakout star da série, é interpretado por Norman Reedus GENE PAGE/AMC
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Greg Nicotero é um dos líderes da equipa e um dos mais respeitados artistas de caracterização de Hollywood GENE PAGE/AMC
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Andrew Lincoln, aliás Rick Grimes, na rodagem da série GENE PAGE/AMC
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Rick Grimes reencontra Morgan (ao fundo à esquerda) e novas ameaças nesta temporada GENE PAGE/AMC
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“Se tivermos a sorte de a nossa mente visitar a metáfora, os walkers não são walkers", diz Tovah Feldshuh GENE PAGE/AMC

Os zombies rodeiam-nos ao sol. Arrastam os pés e ouve-se o restolhar das roupas mais queimadas pelo tempo ou pelo sangue seco. São dezenas, uma massa acastanhada que cambaleia, decidida, porque no apocalipse todas as horas são horas boas para comer. Especialmente na Geórgia, a parcela húmida e calórica dos Estados Unidos onde nos deparamos com esta manada. Nas filmagens de The Walking Dead, uma das mais populares séries da televisão do mundo, “os zombies estão lindos, estão a decair mais”, alegra-se o protagonista da série, com a voz algures entre o actor britânico Andrew Lincoln e a personagem americana Rick Grimes.

Em The Walking Dead, o inferno são os outros humanos, mas a ameaça primária são os zombies - e quando as câmaras se desligam, há um carinho grande pelos mortos-vivos. Andrew Lincoln, acabada uma cena de acção e ainda a pingar suor e água, ferida falsa no nariz e barba rala, elogia a sua beleza e o trabalho de caracterização e efeitos visuais. Mais tarde, Tovah Feldshuh, que interpreta Deanna Monroe, a líder da comunidade fictícia de Alexandria onde deixámos a série na quinta temporada, completa a ideia de que os zombies são nossos amigos: “Como actores devemos tudo aos walkers”, a gíria de Robert Kirkman, criador dos comics (2003) e produtor executivo da série televisiva (2010) que neles se baseia, para zombies ou mortos-vivos.

A cultura popular também os acolheu e um dos seus mais globais sintomas é esta série de televisão vista por mais de duas dezenas de milhões em todo o mundo – no último episódio bateu recordes, com cerca de 20 milhões de espectadores, entre visionamentos em directo e em diferido, só nos EUA, fora os 4,4 milhões que vêem a série nos canais Fox em todo o mundo e a incontornável pirataria.

As últimas horas de Setembro passam sobre a Geórgia. Vêem-se algumas coisas que não se podem contar - sigilo, que as gravações já vão adiantadas e só esta segunda-feira é que a série regressa aos canais internacionais da Fox, que leva a série do AMC a 126 países fora dos EUA. Os fãs são vorazes e até já drones usaram para tentar espreitar o que vem aí na sexta temporada da viagem dos sobreviventes, liderados pelo ex-polícia Rick Grimes, por uma América devastada por uma infecção que dizimou, com a ajuda dos extremos da fealdade moral humana, grande parte da população. 

No spoilers, portanto. Rick Grimes luta com uns zombies, mas isso é business as usual em The Walking Dead. Mas tudo o resto é uma festa para os sentidos. A equipa trabalha em vários locais de filmagens e em várias parcelas de episódios mais ou menos adiantados desta temporada de 16 capítulos. Usam t-shirts com ilustrações gore alusivas ao seu trabalho nas anteriores temporadas, cintos com ferramentas múltiplas e carregam chapéus para criar sombras para o elenco, vivo ou morto-vivo. E avisam que esta será uma temporada de recordes - há mais zombies nos primeiros episódios do que no conjunto das primeiras cinco temporadas, por exemplo. Centenas, milhares. Morgan, personagem que acolheu Rick na primeira temporada, por lá anda e haverá também alguns jogos com o tempo.

O episódio que esta segunda-feira é transmitido na Fox às 22h15 é como “um filme de monstros” para Lincoln e ou, para o showrunner Scott Gimple, responsável operacional pela série, um trocar de voltas à eterna dualidade de Walking Dead. Quem nos conta a perspectiva de Gimple é Greg Nicotero, referência mundial de caracterização e efeitos visuais, produtor executivo da série e que terminará a temporada com o maior número de episódios realizados - 15, entre os quais o First Time Again desta segunda-feira. “Scott dá-nos um tema a cada temporada para sabermos o que esperar, resumido-o num par de frases que normalmente envolvem a referência ao facto de que ‘esta não é mesmo uma série de zombies, é uma série com grandes personagens e os zombies são pano de fundo’. Este ano, a frase era ‘esta é decididamente uma série de zombies’”, sorri Nicotero.

Os figurantes que fazem as vezes de walkers são sobretudo jovens, homens e mulheres. Os zombies preferem as calças - as saias parecem obstáculos proibitivos no apocalipse. São quatro as categorias de zombies, explica-nos um dos técnicos de efeitos visuais, e os “heróis”, os que surgem em primeiros planos, demoram cerca de 1h30 a criar com próteses moles e pinturas. Os intermédios são sobretudo maquilhados e os walkers de background usam máscaras. Fora de cena, eis os momentos alegremente normais da vida de um zombie à espera: fumam cigarros electrónicos à sombra, relaxam atrás de óculos escuros e alguns agarram uma caixinha transparente - lá dentro repousam os seus dentes apodrecidos.

“Não podemos evitar o medo”
Em 2007, um pequeno canal de televisão por subscrição que transmitia só cinema lançava-se na produção de séries - Mad Men, um ano depois Breaking Bad e em 2010 The Walking Dead. Uma série que parecia fadada ao nicho e que tocava cada vez mais público generalista - apesar de, temporada a temporada, ter sido irregular na qualidade. É “como um Cavalo de Tróia”, diz o britânico Andrew Lincoln no seu melhor sotaque americano e dentro das botas esburacadas que calçam a sua personagem desde 2010. “Chegámos como uma série de género e, se tudo correr bem, partimos o coração das pessoas”.

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Um fã de horror desde criança - “conheci George Romero aos 12 anos” (e anos mais tarde viria a trabalhar com ele) -  Greg Nicotero está na série desde o primeiro episódio como supervisor da caracterização. Agora é uma das figuras mais importantes do filão. Afasta a ideia de “nicho” e prefere falar da série como “uma óptima história num género que é popular desde que o cinema começou”, debitando exemplos: “FrankensteinDrácula. As pessoas sempre adoraram ter medo, mistério, suspense, emoções e arrepios”. O colaborador regular de Tarantino ou Sam Raimi defende que esta é “uma história que nunca tinha sido contada na televisão”.

Alguma ficção é uma forma de processar medos, ansiedades, a inquietação do momento. Nas conversas e na reflexão sobre o tema invocam-se o psicólogo e teórico Bruno Bettelheim, autor de A Psicanálise dos Contos de Fadas, a geopolítica actual, o fantasma do nuclear no século XX ou as certezas de Stephen King: “A grande ficção de terror é quase sempre alegórica”. Ouvindo os protagonistas de The Walking Dead falar, a série é como um rim que filtra as impurezas do mundo, uma noite por semana, para depois prosseguirmos as nossas vidas de escritório e água engarrafada. “Por isso é que Walking Dead é útil para a psique humana a tão grande escala”, frisa a veterana actriz da Broadway Tovah Feldshuh. 

Michael Cudlitz (o ruivo militar Abraham Ford na série) ajuda a responder à pergunta (normalmente acompanhada por uma careta) que um fã de The Walking Dead ouve tradicionalmente de quem não comunga do fenómeno: “Mas o que é que tem uma série de zombies?” “Dizer ‘as pessoas gostam porque é sobre zombies’ é idiota”. Sobre o que é que pensa que é? “Tem a ver com quem somos culturalmente e com os conflitos que decorrem em todo o mundo”. 

Feldshuh, uma força da natureza declamadora, é enfática. “Se tivermos a sorte de a nossa mente visitar a metáfora, os walkers não são walkers. São o Estado Islâmico, são o ébola, a sida, o cancro terminal, o tribalismo, as pessoas que foram a África e trouxeram os negros para os escravizar. São as forças negras do planeta”, diz. O sucesso internacional crescente da série coincide com o “processar das armas de destruição maciça, do Irão, de uma guerra terrivelmente mal travada por George W. Bush”. Tovah Feldshuh, que chegou à série há pouco mais de um ano e como uma versão feminina de um papel que nos comics era de um homem, vê também nela a possibilidade de ver “quem, em combate, permanece um ser humano por inteiro, um adulto, e quem se transforma num animal. O rio da experiência humana comum é constantemente tocado nesta série e por isso é que acho que as pessoas a vêem”.

Andrew Lincoln está há seis anos na pele de Rick Grimes -  “adora os seus adereços”, peças únicas que usa religiosamente, do relógio ao revólver e às tais botas gastas, como confidencia o prop master (aderecista) John Sanders - e defende que “a grande ficção científica e as histórias de nicho, de género, contam as melhores histórias sobre como é viver no planeta naquele dado momento. Philip K. Dick, William Golding... Penso nessas grandes obras, entre guerras, em que há paranóia e medo. E não podemos evitar o medo neste momento, o medo é-nos vendido todos os dias. Estamos a contar uma história muito assustadora, mas é sobre sobrevivência e, em última análise, esperança”. 

Senoia, capital zombie
A série mais vista da televisão por subscrição norte-americana teve um importante papel no renovar do interesse do cinema, televisão, videojogos e da academia pelos zombies - em Princeton e em Stanford estudou-se nos últimos anos o fenómeno dos mortos-vivos para falar de neurociência ou as expressões pós-II Guerra da mentalidade survivalist, que pratica a preparação para perturbações políticas ou sociais que periguem a ordem pública. Até os Centers for Disease Control, a agência federal dos EUA encarregue da saúde pública, lançaram em 2011 uma campanha de Preparação para Zombies - que ainda está activa sob o objectivo confesso de aproveitar o fascínio popular para chegar “a novos públicos com mensagens sobre como estar preparado” para catástrofes naturais ou epidemias.  

The Walking Dead é uma série cujos fãs “têm todas as idades. Não é o tipo de 19 anos do metal com a t-shirt dos Metallica, os braços tatuados e cabelo comprido - acabei de me descrever há 40 anos”, ri-se Nicotero, ciente da transversalidade da série. “Conseguimos transcender as fronteiras das mães e das avós. É uma estranha ligação familiar que adoro. É como Star Trek ou Twilight Zone, ou Ficheiros Secretos”, diz, que “mudaram a paisagem da televisão e a forma como as pessoas viam as séries. Estamos a fazer a mesma coisa e é o trabalho mais difícil que já tive”. Conhecida por, a par de Guerra dos Tronos, não hesitar em eliminar personagens queridas e exigir bastante dos seus espectadores, é povoada pela morte, pela violência, moralidade e pelo conceito de civilização. O que resta quando tudo colapsa?

É uma ideia que surge em Senoia, uma sonolenta cidadezinha do sul americano em cuja Main Street foi filmada parte da cidade de Woodbury na terceira e quarta temporadas. Nos últimos anos ali nasceu a Woodbury Shoppe, loja oficial da série que simboliza os visitantes e o dinheiro que os walkers trouxeram a Senoia. Até uma loja de antiguidades anuncia na montra que tem “zombie t-shirts” e “zombie souvenirs”. 

No final da quinta temporada, em Março, o grupo de Rick, Daryl, Carol e Michonne debatia-se com a impreparação dos habitantes de uma cidade-oásis de nome intencionalmente carregado de significado histórico. Em Alexandria encontraram duches, flirts, bolachas e uma ex-congressista como líder. Ora Alexandria existe. Na Gin Property, o nome mundano de Alexandria, os relvados e os arbustos estão penteados. É uma propriedade junto à linha de comboio que atravessa Senoia (pronunciada bem à sul como “Senói”) onde vivem de facto pessoas, onde há casas à venda, vizinhos a passear o seu caniche, relvados aparados e arbustos penteados. Ainda assim e tal como na imaginação de Robert Kirkman, ganhara para a série uma vedação de chapa ondulada a toda a volta para manter o mundo lá fora. 

Nas filmagens, não vimos Robert Kirkman, que “está ocupado a presidir ao mundo”, como brinca a co-produtora executiva Denise Huth, gerindo três séries (Fear The Walking DeadThe Walking Dead e a futura Outcast, já em rodagem) e o seu trabalho na BD. Colabora de perto com o showrunner e os argumentistas. É “flexível na adaptação do material” base que criou, diz Huth, embora tenha poder de veto - e foi muito específico com o casting e o aspecto da personagem Michonne, por exemplo, uma das favoritas do público a par de Daryl Dixon, a breakout star da série e que não existe nos comics. “É o mundo do Robert e nós só estamos cá”, ri-se Huth. 

Esse mundo tem como centro Rick Grimes. “É o melhor papel que eu tive”, diz Andrew Lincoln, que passa os sete meses de trabalho na série em personagem e é elogiado pela equipa como uma espécie de líder. 

“A minha viagem, na primeira metade da temporada, é sobre se estas pessoas nesta comunidade serão capazes de sobreviver, de aprender as competências que nós aprendemos. Sou bastante duro”, diz sobre as ameaças “mais assustadoras e maiores” de sempre na intriga que aí vêm. Um dia, aceitaria que também Rick pode desaparecer da história?, perguntam-lhe. Vê num futuro longínquo o fechar de ciclo para a sua personagem “para que a série possa avançar. Adoro este tipo, mas seria um grande episódio”.

O PÚBLICO viajou a convite da Fox International

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