O melhor da Bienal de São Paulo mostra-se em Serralves

Serralves inaugura esta sexta-feira a exposição Como (…) coisas que não existem, montada a partir de uma selecção das obras que estiveram na Bienal de São Paulo. É a primeira vez que a prestigiada bienal brasileira viaja até à Europa.

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A exposição em Serralves apresenta 28 artistas e colectivos, dos 75 que puderam ser vistos em São Paulo Adriano Miranda
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É uma exposição que lida abertamente com os conflitos do presente, da destruição de património no Médio Oriente às tensões russo-ucranianas Adriano Miranda
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A relação entre a exposição que esteve na Bienal de São Paulo e a que agora se mostra em Serralves, naquela que é a primeira itinerância europeia da bienal brasileira, “é como a de um vinho e uma aguardente: têm sabores diferentes, mas percebe-se a ligação”, diz o escocês Charles Esche, um dos curadores de Como (…) coisas que não existem, que esta sexta-feira se inaugura no Museu de Serralves, onde permanecerá até 17 de Janeiro do próximo ano.

Apresentando 28 artistas e colectivos, dos 75 que puderam ser vistos em São Paulo entre Setembro e Dezembro de 2014, a montagem da exposição em Serralves implicou mostrar cerca de um terço das obras num espaço dez vezes mais pequeno. Uma restrição que se revelou positiva: “Acho que o sabor aqui é mais intenso”, assegura ao PÚBLICO Charles Esche, um dos três curadores — os outros são Galit Eilat e Oren Sagiv — responsáveis pela selecção de obras agora mostrada no Porto.

Com uma fortíssima dimensão social e um óbvio desejo de denunciar os efeitos mais negativos da globalização ao mesmo tempo que imagina e pensa outros possíveis, a exposição “conta sensivelmente a mesma história no Brasil e em Portugal”, diz ainda Esche, mas observando que a necessidade de adequar as peças à arquitectura de Siza Vieira gerou diálogos entre determinadas obras que não existiam em São Paulo.

O curador confessa ainda não ter ficado “totalmente satisfeito” com as obras que resultaram de algumas das encomendas feitas para a bienal paulista, e nota que os curadores tiveram agora a possibilidade de escolher a partir de peças que já conheciam.

O texto que Esche e Eilat escreveram para o livro que Serralves editou para acompanhar a exposição — e que se afasta um tanto do catálogo convencional, incluindo não apenas textos críticos, mas contribuições heterogéneas de vários dos artistas representados —, enuncia com invulgar clareza a convicção de que a arte pode mesmo ajudar a mudar o mundo.

Vendo neste início do século XXI “uma época de decepção”, os curadores observam que “os movimentos de oposição estão a ganhar força colectiva, mas terão ainda de apresentar uma narrativa alternativa convincente”, e que, por agora, “a indecisão e o medo dominam tudo e todos”. Mas admitem haver motivos para esperar que “uma grande transformação” venha a “ocorrer mais cedo ou mais tarde”, o que tornaria “urgente” existir, argumentam, “capacidade da imaginação para preparar o terreno”, algo que “a arte no seu melhor pode realizar”.

Petição ao Papa
Uma das mais sedutoras obras presentes nesta exposição, com a sua mistura de crítica e humor, é Errar de Deus, uma instalação do colectivo argentino Etcétera que parte da obra de León Ferrari e utiliza algumas das peças deste artista iconoclasta desaparecido em 2013. Ferrari foi censurado na Argentina pelo então arcebispo Jorge Bergoglio, o actual Papa.

Numa sala rodeada por imagens alusivas à devastação dos recursos naturais na América latina, uma bancada vermelha com telefones permite aos visitantes ouvir as conversas de deus com o Papa, Angela Merkel e vários outros interlocutores. Uma ideia inspirada num livro de Ferrari em que este colava trechos bíblicos a notícias de jornais e outros textos, criando diálogos inesperados.

Uma vitrine expõe os divertidos objectos criados por Ferrari, que associam uma estética de brinquedos de bazar a mensagens por vezes bastante violentas, de um Jesus guiando um tanque a Hitler apanhado numa dessas ratoeiras clássicas que aparecem nos desenhos animados de Tom e Jerry ou Speedy Gonzales.

Numa parede, recolhem-se assinaturas para uma petição, a ser entregue ao papa Francisco, pedindo a abolição definitiva do Inferno. Novamente, trata-se de recuperar uma iniciativa original de Ferrari, que escreveu duas vezes a João Paulo II a solicitar-lhe que extinguisse esse local de eternos suplícios. Federico Zukerfeld, um dos elementos do colectivo Etcetera, argumenta que num mundo onde a tortura está ainda hoje tão presente, o Papa deveria decidir se a religião é “um aparelho de guerra e tortura ou uma fonte de libertação”.

A ideia de criar coisas que (ainda) não existem, está bem representada logo na primeira sala do percurso expositivo, onde uma obra da chinesa Qiu Zhijen— enormes mapas que não cartografam apenas lugares, mas também ideias e emoções — convive com uma instalação resultante do trabalho conjunto de crianças e adultos envolvidos num projecto com refugiados palestinianos e moradores de uma favela brasileira.

Noutra sala, uma floresta suspensa de acrílicos figurando um arquivo de documentos da CIA sobre a ditadura brasileira, concebida pela chilena Voluspa Jarpa, dá o tom a várias obras relacionadas com o passado colonial e a heranças das ditaduras latino-americanas.

Com uma forte representação brasileira, mas incluindo também artistas das mais diversas proveniências — da Argentina ao Chile e à Colômbia, de Portugal e Espanha à Itália ou Polónia, de Israel e da Palestina à Turquia ou à China, esta é uma exposição que lida abertamente com os conflitos do presente, da destruição de património no Médio Oriente às tensões russo-ucranianas. Mas Charles Esche prefere falar da sua dimensão “social”, e “não tanto política”, pelo menos em sentido mais estrito, até porque, recorda, o historial de violência na América Latina não é apanágio exclusivo da direita.

Sintomaticamente, o percurso acaba no Inferno, título de um filme de Yael Bartena que mostra a inauguração de uma réplica do templo de Salomão em São Paulo, construída pela Igreja Universal do Reino de Deus com pedras vindas de Israel.

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