Primeiros ataques russos na Síria evitam território do Estado Islâmico

Bombas de Moscovo atingem zonas onde o exército de Assad combate várias facções rebeldes e extremistas, mas não o Estado Islâmico. Aprofundam-se divergências entre aliados de Assad e Ocidente.

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Imagens da destruição em Talbisseh, onde a oposição moderada diz que foi atingida e morreram civis Mahmoud Taha/AFP

Caíram as primeiras bombas russas na Síria, mas não há consenso sobre quem é que foi atingido. Moscovo diz que atacou o autoproclamado Estado Islâmico. Governos no Ocidente, forças de oposição sírias e observadores no terreno desmentem-no e afirmam que o que os caças russos atacaram nesta quarta-feira foram principalmente posições de rebeldes moderados e grupos oposicionistas a Assad. A sua tese é a de que o Kremlin está a usar o encoberto da luta ao terrorismo para fortalecer o regime sírio. Os mapas do conflito e as imagens que surgiram ao longo do dia sustentam esta última tese.

Durante a manhã, os deputados russos aprovaram por unanimidade uma missão militar na Síria a pedido do Presidente Bashar al-Assad. O texto restringia a acção dos caças russos que viajaram nas últimas semanas para a base de Latakia, na costa do Mediterrâneo e coração da comunidade alauita que apoia Assad. O objectivo das operações será “exclusivamente o de dar apoio aéreo ao Governo sírio na sua luta contra o Estado Islâmico”, garantiu o chefe do gabinete do Kremlin. Pouco depois começaram os bombardeamentos e Vladimir Putin, também de Moscovo, afirmava na televisão que a melhor estratégia para combater o extremismo islâmico no país era a de o atacar antes que ele chegasse à Rússia.

As bombas russas atingiram vários alvos em três regiões do Noroeste sírio: Homs,Hama e Latakia. A coligação liderada pelos Estados Unidos nunca bombardeou tão a Oeste na Síria – concentraram-se até agora no Leste do país, o bastião do Estado Islâmico (EI), salvo ataques ocasionais nos arredores de Alepo a células da Al-Qaeda. Um dos locais atingidos, Talbisah, a Norte da cidade de Homs, é o centro de uma das mais importantes bolsas rebeldes na região. Para além do Exército Livre da Síria e de pequenos grupos rebeldes, conhece-se lá a presença da Frente al-Nusra, o poderoso braço da Al-Qaeda na Síria, e dos conservadores islamistas do Ahrar al-Sham, seus aliados. Mas não do EI, que só tem presença a mais de 50 quilómetros de distância.

Há semanas que a Rússia aumenta a sua presença militar na Síria e indica que começaria a fazer bombardeamentos em defesa do Governo de Bashar al-Assad. O exército sírio perdeu territórios importantes ao longo do último ano e o próprio Assad admitiu recentemente que precisa de mais homens no terreno. Damasco é sustentado no terreno pelo Hezbollah libanês, comandado pelo Irão, de quem recebe também combatentes, dinheiro e armamento. No entanto, esta é a primeira vez que a Rússia faz operações militares em nome de Assad. 

Minutos depois dos bombardeamentos desta quarta-feira começaram a surgir imagens nas redes sociais de pessoas soterradas nos escombros de edifícios a Norte de Homs e nos arredores de Hama. Os autores alegam que a destruição fora causada por caças russos em zonas residenciais. As redes de monitorização do conflito e forças moderadas repetiram a mesma ideia.

“Todos os alvos no raide russo de hoje a Norte de Homs foram civis”, disse Khaled Khoja, o líder da Coligação Nacional Síria, o órgão oposicionista apoiado pelos Estados Unidos e União Europeia. O Observatório Sírio para os Direitos Humanos, que documenta a guerra através de activistas no terreno, confirmou baixas civis e a Organização de Defesa Civil da Síria, força de socorros não-governamental, dava 33 civis mortos – menos dos que os 36 que apontou Khoja. Em Hama, o comandante do Exército Livre da Síria afirmou à Reuters que os caças russos atingiram zonas em que não existiam combatentes do Estado Islâmico.

Tudo “guerra da informação”, segundo a porta-voz do Ministério da Defesa russo, Maria Zakharova. O Kremlin afirma que eliminou oito alvos do EI em 20 voos de ataque. Atingiu, segundo diz, “depósitos de armas, combustível e equipamento militar” do grupo extremista, para além de “centros de coordenação do grupo”. Questionada por um jornalista do The Times of London sobre se os caças russos não haviam atingido posições do Exército Livre da Síria, Zakharova contestou: “Ele existe? A maioria deles não se juntou ao Estado Islâmico?”

 

Dois blocos opostos

As operações desta quarta-feira sublinham as duas visões contrárias entre Ocidente e países aliados de Assad sobre as causas da guerra na Síria e as prioridades para terminar o conflito. Moscovo acredita que Assad é a única alternativa viável para a crise que, em quatro anos e meio, matou mais de 250 mil pessoas e fez mais de quatro milhões de refugiados.

Sem a administração do Presidente sírio, afirma o Kremlin, a Síria arrisca-se a cair num destino semelhante ao da Líbia, onde a intervenção estrangeira precipitou a queda de Khadafi e deixou o país sem instituições e ingovernável. Moscovo, tal como Damasco, considera que toda a oposição armada ao Governo sírio são organizações extremistas. Esta interpretação parece ter sido a que determinou os bombardeamentos desta quarta, todos em áreas em que o exército sírio é a força dominante mas disputada.

É uma visão que contrasta com do Ocidente. Disse-o na segunda-feira Barack Obama, na abertura da 70ª Assembleia Geral das Nações Unidas e repetiu-o nesta quarta-feira o seu secretário de Estado, John Kerry, na reunião do Conselho de Segurança da ONU. “O meu colega”, declarou Kerry, apontando para Sergei Lavrov, o seu homólogo russo, “disse que temos de apoiar Assad para derrotar o EI. A realidade é que o próprio Assad muito raramente escolheu lutar o EI. Em vez disso, tem concentrado todo o seu poder militar em forças moderadas da oposição que lutam para ter uma voz na Síria”.

Washington e Londres foram os últimos governos ocidentais a aligeirar a sua posição a Assad nos últimos dias. Admitem agora ambos que o Presidente sírio tenha um papel temporário num possível executivo de transição, tal como Espanha e Alemanha, por exemplo – o aumento da presença militar russa no país contribuiu para isto. Mas o Ocidente, e em especial os Estados Unidos, tentam ainda perceber qual é o principal objectivo de Putin na Síria. O Presidente russo disse nesta quarta-feira que acredita que Assad está preparado para uma mudança de regime. Foi a declaração mais comprometedora do líder russo até ao momento sobre o futuro do Presidente sírio.

Barack Obama e o Presidente russo encontraram-se na noite de segunda-feira em Nova Iorque para discutirem o conflito sírio e a situação no Leste da Ucrânia. Putin propusera horas antes uma coligação abrangente para lutar contra os extremistas na Síria e Obama, discursando também na Assembleia Geral da ONU, disse-se preparado para negociar com o Irão e Rússia para encontrarem uma solução para a guerra. Mas pouco se avançou nesse encontro para além de uma discussão sobre maneiras de evitar que caças russos e norte-americanos se confrontassem nos ares da Síria – a coligação ocidental faz operações contra o EI há pouco mais de um ano.

Mas até esse tema está atrasado. O secretário da Defesa norte-americano disse nesta quarta-feira de que os seus homólogos russos o avisaram dos seus bombardeamentos apenas uma hora antes de os fazerem. Ash Carter, que condenou os ataques russos sobre posições em que “provavelmente” não existiam combatentes do EI, disse que esses canais de contacto iriam ser preparados em breve. 

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