Lisboa e Porto pararam para ouvir "não" à Uber

Foi a maior manifestação de taxistas de sempre e a mobilização teve como alvo a Uber, a empresa que veio mudar em Portugal a forma de ligar um cliente a um motorista. Os taxistas estão prontos para mais manifestações. Tudo depende de uma resposta do Governo, prevista para dia 21.

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Estima-se que mais de 300 taxistas tenham protestado em Lisboa, 800 no Porto Bruno Lisita

“Contra o transporte à margem da lei”. “Por uma concorrência justa”. Frases como estas repetiram-se esta terça-feira nos cartazes colados nos vidros e portas dos táxis que, pelas 8h30, iniciaram uma marcha lenta por Lisboa em protesto. Quem está à margem da lei é a Uber, a aplicação tecnológica que liga o cliente a um motorista e que tem a sua actividade suspensa por ordem do tribunal, mas que, cinco meses depois da decisão, continua a operar.

No canto superior direito do vidro do táxi, Maria Santos tem o seu cartão de aptidão profissional de motorista de táxi, no qual se vê uma fotografia a preto e branco, já antiga. “A cada cinco anos tenho que renová-lo. Para o ter, tenho que realizar uma série de testes. E tem despesas”, conta Maria dos Santos ao PÚBLICO, enquanto conduz entre os mais de 3000 taxistas que responderam ao apelo de protesto feito pela ANTRAL (Associação Nacional dos Transportadores Rodoviários em Automóveis Ligeiros), entre o Parque das Nações e a Praça do Comércio.

“A ANTRAL tem razão na maior parte das questões em relação à Uber. Esta é a forma de mostrarmos que estamos unidos. Temos que nos manter unidos nesta questão”, continua a taxista, de 55 anos, mais de 30 ao volante de um táxi. Perto da viatura de Maria dos Santos, um grupo de taxistas também comenta o que os levou ali. José Augusto Brandão, 44 anos, assume as rédeas da conversa e afirma que a manifestação quer “contestar as medidas que o Governo não tomou”. “Há problemas nos transportes em geral, mas este é muito grave para o sector”.

Depois do Parque das Nações, uma longa paragem no acesso ao aeroporto pela Segunda Circular. Através de telefonemas de colegas mais à frente na marcha ia-se sabendo que não havia táxis em serviço na zona. À chegada ao Aeroporto da Portela, onde um forte dispositivo da PSP já os aguardava, os taxistas fizeram-se ouvir com fortes buzinadelas. O aeroporto era uma das zonas delicadas da manifestação. Tem sido ali que têm ocorrido confrontos entre taxistas e motoristas ao serviço da Uber. Esta terça-feira, não havia sinal de qualquer viatura Uber. Na zona das chegadas dezenas de turistas aguardavam por um Aerobus como alternativa para os levar até ao centro da cidade. Durante cerca de uma hora, centenas de viaturas permaneceram ali imóveis mas ruidosas. Entre a música tecno que saía de uma carrinha-táxi, ouve-se que esta é a “maior manifestação de taxistas de sempre”.

Quem não protestou recebeu ovos
As viaturas retomaram o movimento uma hora e meia após o início do desfile. O PÚBLICO apanhou boleia de Zico Lampreia, taxista há seis anos. O nome Uber suscita um suspiro no motorista de 32 anos. “Estamos desiludidos. Por isso o objectivo de hoje é parar a cidade. A Uber está a acabar com o nosso negócio. Há menos pão a entrar em casa. Qualquer dia perdemos a cabeça”, desabafa Zico. O taxista faz o serviço nocturno e diz que “por várias vezes” já se cruzou à porta das discotecas com viaturas Uber. “Eles assim acabam com a classe”, reforça. Até ao aparecimento da Uber, Zico conta que conseguia levar para casa 90 a 100 euros por noite. “Agora não passo dos 30 ou 40”. Tal como outros taxistas, admite que a “Uber está muito bem preparada”. Reconhece que “são muito atenciosos com os clientes”. “Mas não têm as despesas que nós temos”, resume Zico. 

Nova paragem no desfile, agora na Avenida Gago Coutinho. É ali que começam a registar-se os primeiros incidentes do protesto. Apercebendo-se da passagem de taxistas em serviço, motoristas saem das viaturas e arremessam ovos aos carros dos colegas. “Não podemos aceitar que haja colegas a fazer negócio neste dia. Estamos a manifestar-nos por eles”, diz irado um taxista de ovo na mão.

O protesto prosseguiu até ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT). Aí, a ANTRAL recebe a primeira resposta positiva quanto ao que está a ser feito quanto à Uber. O presidente do IMT garantiu ao dirigente da associação, Florêncio de Almeida, que os autos contra a empresa levantados pela polícia estão a ter seguimento.

Apesar do apelo à não-violência que se foi fazendo durante o desfile, a cada paragem dos taxistas surgiram ovos em direcção aos táxis em serviço que passavam. Houve lugar também a pontapés às viaturas quando estas paravam em semáforos. Depois da passagem pelo IMT, deu-se mesmo o caso de uma agressão a um taxista, depois de a sua viatura ter sido alvo de ovos. Os ânimos exaltaram-se e um repórter fotográfico que estava a registar o incidente acabou também por ser agredido. A organização apresentou desculpas ao jornalista.

Durante o pára-arranca, o PÚBLICO questionou um grupo de taxistas sobre o que poderá acontecer se o Governo alterar a lei a favor da Uber. Responderam de forma peremptória: “Se o Governo mudar a lei vai haver mortos. Perdemos a cabeça”, atirou um taxista apoiado por vários outros.

Recentemente, a ANTRAL admitiu ao PÚBLICO que há mesmo o “conluio do Governo” para que não seja aplicada decisão judicial de Abril, a ordenar a suspensão da actividade da Uber. Esta terça-feira, a associação parecia mais contida na posição assumida. No Ministério da Economia, onde a ANTRAL esperava ser recebida pelo ministro, houve uma garantia de reunião com Pires de Lima, mas no próximo dia 21. Fora do ministério, em Vilamoura, Pires de Lima acabou por afirmar que entendia “uma parte do sentido dos seus protestos” e que a Uber era um serviço que devia ter "regras próprias". Mas acrescentou que a empresa está a prestar um serviço "que alguns entendem como necessário e inovador".

Na Praça do Comércio, onde o desfile terminou cerca de sete horas depois, com as viaturas a pararem ao longo da Rua da Prata, outra “boa notícia”, como anunciou Florêncio de Almeida aos colegas após um encontro com Paula Teixeira da Cruz, no Ministério da Justiça. Depois de receber um dossier com o processo judicial contra a Uber, a ministra Paula Teixeira da Cruz assegurou à ANTRAL que irá trabalhar com Pires de Lima para “encontrar uma solução”, a anunciar “nos próximos dias”, adiantou Florêncio de Almeida. Ficou, no entanto, a garantia pelo responsável: "Se isto não for resolvido, iremos fazer concentrações espontâneas em qualquer sítio". “A de hoje foi um sucesso”, disse ao PÚBLICO.

“Uber, Go Home
No Porto, a concentração estava marcada na Praça Gonçalves Zarco, e a expectativa era a de que a marcha lenta causasse perturbações no trânsito nas principais ruas e avenidas da cidade - auto-estrada incluídas. Os cartazes apelavam ao cumprimento da lei, mas os taxistas decidiram também protestar em inglês com a frase “Uber, Go Home” escrita em cartazes afixados nos carros e inscrita nas camisolas dos motoristas.

Cândida Magalhães, proprietária de uma empresa de três táxis há 22 anos, e Elsa Gonçalves, funcionária em formação, não têm dúvida de que esta luta é “justa”. “Só para tirar o CAP, o certificado que nos permite exercer, custa 600 euros”, contabiliza Elsa. A patroa, Cândida, enumera todas as outras despesas: “Alvará, licença, segurança para os motoristas, renovar CAPs de cinco em cinco anos, fazer a aferição do taxímetro, se não tenho um autocolante a dizer proibido fumar, pago multa de dois mil euros… quer que continue?”, questiona.

Houve taxistas vindos do Porto, Matosinhos, Gaia, Valongo, Braga, Santo Tirso, Viana do Castelo, Valença, Santa Maria da Feira, Barcelos. Tal como em Lisboa, a ANTRAL queria um protesto pacífico. “Somos ordeiros. Só queremos que se cumpra a lei, e também seremos os primeiros a fazê-lo”, disse ao PÚBLICO o vice-presidente da ANTRAL, José Monteiro.

Se ao início da manhã José Monteiro esperava uma grande adesão, quando partiu o ultimo táxi da Praça Gonçalves Zarco, rumo à Avenida da Boavista, um responsável da Divisão de Trânsito da PSP que fazia o fecho da coluna indicava ao PÚBLICO: “São seguramente 800 carros”.

Os receios da polícia centravam-se nos eventuais encontros entre motoristas em manifestação e algum colega a furar o protesto; mais ainda, no caso de os manifestantes encontrarem algum motorista da Uber, que, mesmo com carros descaracterizados, os taxistas se “profissionalizaram” em detectar. “É muito fácil ver quem são”, contou Aníbal Dias, taxista há 40 anos, agora patrão de si próprio e dono de um carro que lhe dá um rendimento mensal de “pouco mais de 500 euros”. “Tenho um posto de trabalho, bem sei. Mas os impostos e as obrigações legais levam tudo. E chegam estes senhores e não tem de pagar nada. Não pode ser”, protesta.

À semelhança de Lisboa, era para o aeroporto do Porto que estavam reservados os momentos de maior tensão. Muitos traziam pedras escondidas no carro. Outros ovos. Durante mais de uma hora, os utentes do aeroporto do Porto não conseguiram apanhar táxis. E também não se viam carros Uber. Quatro horas depois do início da concentração esta era dada por terminada.

Em Faro, o protesto foi mais reduzido. Perto de 150 taxistas participaram na marcha lenta que partiu do Parque das Cidades. Durante perto de duas horas, os taxistas percorreram algumas das principais artérias de Faro, passando também pelo aeroporto local. Pelas 11h30, o protesto terminou sem incidentes registados.

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