A barbárie do Estado Islâmico decapitou um guardião de Palmira

Khaled al-Assad tinha 81 anos e ajudou a preservar os tesouros arqueológicos durante meio século. Foi decapitado por se ter recusado a dizer aos extremistas onde estão escondidas centenas de estátuas.

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Khaled al-Assad foi responsável pelas antiguidades de Palmira durante décadas SANA/AFP
Escultura encontrada em Palmira e exposta no museu da cidade, fotografada antes da entrada do Estado Islâmico
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Escultura encontrada em Palmira e exposta no museu da cidade, fotografada antes da entrada do Estado Islâmico Joseph Eid/AFP

Defendia um dos tesouros da humanidade e era ele próprio um tesouro para a arqueologia. Durante meio século, Khaled al-Assad ajudou a descobrir e a preservar muitas das peças do gigantesco e inestimável puzzle que é a cidade de Palmira, património da UNESCO que caiu nas mãos do autoproclamado Estado Islâmico em Maio. Esta semana, ao fim de um mês de interrogatórios sobre o lugar onde tinham sido escondidas outras pérolas da cidade, os fanáticos extremistas fartaram-se do seu silêncio e deram-lhe um destino tantas vezes repetido por onde têm passado: declararam-no infiel, decapitaram-no em praça pública e penduraram o seu corpo num poste.

"Custa acreditar que um académico desta importância, que prestou serviços memoráveis a este sítio e à própria História, tenha sido decapitado. A presença continuada destes criminosos na cidade é uma maldição e um mau presságio para Palmira e para cada uma das suas colunas e outros achados arqueológicos", disse à agência Reuters Maamoun Abdulkarim, director-geral do património arqueológico da Síria.

Nascido em Palmira em 1934, o homem que foi responsável pelas antiguidades e pelos museus da cidade entre 1963 e 2003 continuava, aos 81 anos, a ter um papel fundamental na sua preservação, como consultor – Maamoun Abdulkarim descreve-o como "um dos mais importantes pioneiros da arqueologia síria no século XX".

Khalil Hariri, funcionário do departamento arqueológico de Palmira e genro de Khaled al-Assad, lamentou a morte do homem que era "um tesouro para a Síria e para o mundo", e desafiou os extremistas do autoproclamado Estado Islâmico: "A campanha sistemática que estão a levar a cabo tem como objectivo atirar-nos de volta para a pré-história, mas não vão conseguir", citou a Associated Press.

Howard Carter de Palmira
Para Amr al-Azm, antigo director dos laboratórios de ciência e conservação da Síria, "era impossível escrever sobre a história de Palmira, ou sobre qualquer coisa relacionada com Palmira, sem mencionar o trabalho de Khaled al-Assad".

"É como falar sobre egiptologia sem referir Howard Carter", disse Amr al-Azm ao jornal britânico The Guardian, referindo-se ao arqueólogo inglês que descobriu o túmulo de Tutankhamon, em 1922.

Apesar do apelido, Khaled al-Assad não tinha qualquer ligação familiar ao Presidente da Síria, Bashar al-Assad, mas tinha uma ligação política de várias décadas – desde 1954 que era membro do Partido Baas, que governa o país com mão de ferro há 49 anos, 44 dos quais sob a Presidência de Hafez al-Assad e do seu filho, Bashar.

As primeiras informações sobre a morte de Khaled al-Assad indicavam que o seu corpo tinha sido crucificado numa coluna do sítio arqueológico, mas alguns activistas publicaram nas redes sociais fotografias em que se vê um corpo decapitado e pendurado no que aparenta ser o poste de um semáforo, numa avenida da cidade nova, a cerca de 500 metros das ruínas de Palmira.

Num cartaz amarrado ao corpo podem ler-se as acusações feitas pelos carrascos do Estado Islâmico: leal ao Presidente da Síria, Bashar al-Assad; informador de agentes dos serviços secretos e responsáveis pela segurança do regime sírio; representante da Síria em "conferências infiéis"; e gestor da colecção dos "ídolos" de Palmira. De acordo com o Observatório Sírio dos Direitos Humanos (uma organização anti-Assad fundada em 2006), Khaled al-Assad foi executado "em frente a dezenas de pessoas".

Tesouros escondidos
É praticamente impossível ter a certeza absoluta sobre o que quer que aconteça nos territórios controlados pelo autoproclamado Estado Islâmico, mas Maamoun Abdulkarim disse às agências SANA, Reuters e Associated Press que Khaled al-Assad fora feito prisioneiro há um mês, para o obrigarem a revelar onde se encontravam as estátuas escondidas antes de Maio, quando já se temia que os extremistas islâmicos conquistassem Palmira. Como não conseguiram arrancar-lhe essa informação, mataram-no, disse o responsável pelas antiguidades e museus da Síria.

Um dos directores da organização sem fins lucrativos norte-americana American Schools of Oriental Research, Abdalrazzaq Moaz, disse que Khaled al-Assad "insistiu em ficar porque lhe custava ver a cidade a ser controlada por aquela gente".

"Tenho a certeza de que ele estava a tentar convencê-los a não danificarem as antiguidades e o sítio. Foi por isso que o mataram."

Em Maio, quando Palmira caiu nas mãos do Estado Islâmico, os responsáveis pelos tesouros arqueológicos da Síria pediram ajuda internacional: "Centenas e centenas de estátuas que poderiam ser destruídas e vendidas estão agora em lugares seguros. Teme-se pelo museu e pelos grandes monumentos que não podem ser movidos. É uma batalha de todo o mundo", disse então Maamoun Abdulkarim.

Poucos dias depois, os jihadistas divulgaram imagens do sítio arqueológico, aparentemente intacto, e garantiram que iriam preservar a maioria dos monumentos, como as imponentes colunas e o Templo de Bel – de fora dessa lista, e marcadas para serem destruídas, ficaram as estátuas dos "ídolos que os infiéis adoraram". Uma delas, a estátua do leão de al-Lat, com três metros e altura e 15 toneladas, datada do século II e descoberta em 1975, foi destruída no início do Julho.

No mês passado, a directora-geral da UNESCO, Irina Bokova, acusou o autoproclamado Estado Islâmico de pilhar e destruir sítios arqueológicos e museus "numa escala industrial" – não só para promover uma "limpeza cultura", mas também para alimentar a sua máquina de guerra.

"Eles sabem que podem ganhar financeiramente com esta actividade, e estão a tentar fazê-lo. Sabemos que as partes em conflito vendem a determinados negociadores de arte e a coleccionadores privados", afirmou a directora-geral da UNESCO.

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