Não há diplomacia que salve os inocentes dos subúrbios de Damasco

Os grandes actores internacionais fazem avanços inéditos sobre a Síria. Mas nos subúrbios de Damasco está tudo igual e Assad continua a matança indiscriminada de inocentes.

Foto
Adolescente sírio ferido no ataque a Duma aguarda tratamento num hospital improvisado Abd Doumany/AFP

Não se sabe quantas pessoas matou a primeira bomba que caiu no domingo sobre o mercado público de Duma, arredores de Damasco. Eram duas da tarde, a hora mais agitada do dia mais movimentado nas bancas de alimentos. Será para sempre uma incógnita porque, instantes depois, quando centenas de pessoas corriam para ajudar os feridos e retirar os mortos dos escombros, como sempre se faz nesta cidade, os caças do regime sírio atingiram o mercado quase mais uma dezena de vezes. Bashar al-Assad quis matar civis no domingo. Voltou a tentá-lo nesta segunda-feira com novos ataques.

Conseguiu. Morreram 104 pessoas no ataque de domingo ao mercado e mais de 250 ficaram feridas, muitas com gravidade. É um dos bombardeamentos mais mortíferos da história da guerra na Síria. Desde o seu início, em 2011, já matou mais de 250 mil pessoas e fez mais de dez milhões de deslocados. Só nove cadáveres não foram ainda identificados do ataque de domingo, mas nenhum dos 95 que o foram pertence a combatentes do grupo rebelde que governa a cidade: o Exército do Islão. Trinta e cinco eram crianças com menos de dez anos. Só nos ataques desta segunda-feira é que o regime matou rebeldes. Mas não em Duma. 

“Atacar mercados apinhados de civis e matar quase uma centena dos seus próprios cidadãos é inaceitável em qualquer circunstância para qualquer Governo”, disse o enviado especial das Nações Unidas para a Síria, Staffan de Mistura. E Stephen O’Brien, o líder dos esforços humanitários da ONU, secundou-o: “Estou particularmente chocado pelos relatos de ataques aéreos que matam dezenas de civis e ferem centenas.”

Há poucas dúvidas de que Assad sabia que matava civis. Desde 2012 que o faz, como medida de vingança pelos ataques esporádicos do Exército do Islão aos bairros residenciais de Damasco – o ataque de domingo seguiu-se a uma semana em que os rebeldes mataram 13 civis na capital. Mas há meses que habitantes e rebeldes dizem que não há alvos militares nos centros urbanos de Duma e da região de Ghuta Oriental e que os combatentes há muito se mudaram para as zonas agrícolas. O regime escolhe ignorá-lo e escolhe também o armamento próprio para atingir as zonas residenciais.

Os helicópteros do regime popularizaram as chamadas bombas-barril. Só em Julho lançaram 3654, nas contas do Observatório Sírio para os Direitos Humanos, de quem se cita também o número de vítimas em Duma. São explosivos pensados para mutilar e alastrar os danos da forma mais barata possível – literalmente, um barril cheio de dinamite e estilhaços de metal, com um detonador na ponta. Já milhares atingiram as zonas residenciais de Duma, hospitais e escolas, que entretanto se mudaram para zonas subterrâneas. A Amnistia Internacional diz que o regime atacou também os subúrbios com bombas de pára-quedas, que explodem ainda no ar, antes de atingirem os alvos pretendidos; obuses incendiários e mísseis não guiados com mais de duas centenas de quilos de explosivos.

Os arredores vergados
Duma é a maior cidade de Ghuta Oriental, que guarda em si das mais importantes atrocidades cometidas pelo regime de Assad desde o início da guerra. O Exército do Islão também as comete, é verdade, o mesmo faz mais de uma dezena de grupos rebeldes que chegaram a disputar esta região dos subúrbios. Fazem detenções arbitrárias e assassinam gente. Mas não a uma escala comparável à do Governo. Das 1740 pessoas que o regime matou com ataques aéreos desde 2012 em Ghuta, apenas 63 eram combatentes rebeldes, dados do Centro para a Documentação de Violações na Síria (VDC, na sigla em inglês). Nos subúrbios da capital já morreram mais de 27 mil pessoas desde 2011. Um número obscurecido pelas atrocidades de um outro grande actor na Síria, o mediático e autoproclamado Estado Islâmico. 

Em Ghuta morre-se desde o início da guerra. Morreu-se sobretudo nos ataques com armas químicas em Agosto de 2013. Mais de 1400 pessoas, segundo estimativas dos Estados Unidos. Pelo menos 426 crianças. Foi a utilização “mais significativa” do gás sarin desde que Saddam Hussein o usou em Halabja, em 1988, para punir os curdos. Este ataque pareceu a ponto de provocar uma intervenção norte-americana na Síria. Assad foi obrigado a destruir o seu arsenal químico, mas ainda hoje se repetem pela Síria relatos de bombardeamentos com cloro.

Ghuta, tal como Duma, está cercada pelas forças de Assad desde o início de 2013. Até Agosto desse ano, os civis podiam circular com alguma liberdade, embora muitos fossem detidos pelo exército e por vezes atingidos por atiradores furtivos, sem razão aparente. Desde então, o regime apertou o cerco e, agora, só esporadicamente permite a entrada de produtos agrícolas, alguns alimentos e combustível. De Março de 2014 a Maio deste ano, as Nações Unidas conseguiram dar alimento e medicamentos a pouco mais de 24 mil pessoas em Ghuta. Há mais de 163 mil cercadas, a quem falta água, comida, remédios e electricidade. Só se sai com subornos ao exército. E se se escapar do Exército do Islão, que detém qualquer um que queira partir para Damasco.

“Estou aprisionado por dois tiranos”, disse à Amnistia Internacional um activista de Ghuta chamado Mohammed. A organização publicou há uma semana um relatório a descrever a vida nestes subúrbios de Damasco. No mesmo dia, quarta-feira, o regime sírio matou 31 civis num ataque aéreo. Nas palavras de um cirurgião de Duma: “Somos bombardeados num registo diário e a cada hora. Em Duma, em média, recebemos sempre entre 30 a 40 pessoas feridas em ataques. Não temos recursos suficientes, remédios ou médicos. Vi pessoas morrerem no hospital porque não tínhamos maneira de as ajudar.”

Tudo e nada de novo
No campo diplomático, tudo e nada de novo. O acordo nuclear iraniano espicaçou os actores regionais e internacionais e abriu as portas a um novo estágio de negociações sobre o conflito. A Turquia abandonou parte da sua ambivalência em relação à guerra a sul da fronteira, permitiu enfim a utilização das suas bases aéreas para ataques contra o Estado Islâmico e começou também a atingir os jihadistas. Mas Ancara não interfere com Assad e prosseguem as dúvidas sobre se entra no confronto contra os jihadistas para os enfraquecer, para derrotar as ambições dos curdos ou para se precaver contra um Irão mais poderoso. Facto importante: Turquia e Irão negociaram há uma semana uma curta trégua humanitária em três localidades sírias.

Mas há muito para além da questão turca. E deve-se quase tudo à Rússia, que depois do acordo iraniano assumiu a iniciativa diplomática e abriu pontes inéditas entre quase todos os que têm interesses na Síria. Rivais do reino saudita e do regime sírio encontraram-se pela primeira vez em Riad, no final de Julho, sob mediação de diplomatas russos; no Qatar, o ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, falou com líderes da oposição moderada a Assad. Mais tarde, o mesmo Lavrov encontrou-se com o secretário de Estado dos EUA, John Kerry, e com o chefe da diplomacia saudita. Segundo escreve o Politico, pelos bastidores fala-se da possibilidade de um encontro a três entre Washington, Moscovo e Teerão.

É subtil, mas as rivalidades parecem estar a aligeirar-se. Assad tem vindo a perder terreno e já que precisa de mais homens para combater todos os grupos armados. Mesmo contando o crucial apoio do Hezbollah, o grupo armado libanês comandado pelo Irão. Neste sentido, Irão e Rússia podem estar dispostos a abrir mão do aliado, ainda que gradualmente. Acontece o contrário com os Estados Unidos, que deixaram de insistir tão veementemente no afastamento imediato de Assad, com receio de que isso crie um vazio de poder no país e faça da Síria uma nova Líbia. A nova relação com Teerão poderá facilitar as negociações. “Tem de haver um entendimento entre os principais poderes com interesses na Síria de que isto [a guerra civil] não será vencido no campo de batalha”, disse Obama, um dia depois de assinar o acordo nuclear.

A instável corrente diplomática avança, mas nada muda em Duma ou nas cidades sírias que Assad bombardeia a um ritmo diário e quase sempre com consequências trágicas. Se algo mudou, foi para o pior. Nunca o regime sírio fez tantos bombardeamentos desde o início da revolução, em 2011, do que neste mês de Julho. Os jactos e helicópteros do regime fizeram 6673 raides aéreos.

Morreram 791 pessoas sem ligações a grupos armados, extremistas ou não, mais de três mil ficaram feridas e um número incerto, mas na casa dos milhares, teve de fugir de casa. Dos mortos, 207 tinham menos de 18 anos. São números do Observatório Sírio dos Direitos Humanos. Esta organização humanitária que tem sede em Londres garante que os mesmos ataques de Assad mataram mais de 600 combatentes de grupos extremistas e não extremistas.

Diplomacia e cepticismo
Para todos os avanços diplomáticos há um possível contratempo. Nenhum dos aliados tradicionais dos Estados Unidos no Médio Oriente quer ver os norte-americanos a negociarem directamente com Teerão sobre quem deve ser o sucessor de Assad. A Síria é um ponto importante de passagem para o armamento iraniano que chega às mãos do Hezbollah, e, na perspectiva de Teerão, serve de escudo à influência israelita. Há apenas uma semana, em Beirute, o ministro iraniano dos Negócios Estrangeiros, Javad Zarif, enumerou as prioridades para o seu país. “Inimigos regionais: a entidade sionista e o extremismo”, disse.

A verdade é que o plano do Ocidente para lidar com o conflito sírio não está a resultar. A resolução 2139 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que supostamente exige o fim de todos os ataques a civis e o uso indiscriminado de armas em zonas residenciais, está a ser amplamente ignorada. A ofensiva aérea da coligação liderada pelos EUA contra os jihadistas do Estado Islâmico parece resultar apenas em zonas em que existe apoio de milícias no terreno, como é o caso do Norte da Síria. Fora daí, “as facções que Washington quer ver prevalecerem – os rebeldes moderados – são na verdade as forças mais fracas”, como escrevem Richard Fontaine e Michele Flournoy, antigos membros da Administração de Obama, num trabalho para o think-tank Centro da Nova Segurança Norte-Americana. Washington gastou 500 milhões de dólares para treinar 60 rebeldes na Síria. Alguns já foram capturados por extremistas, outros morreram em bombardeamentos do regime.

Nada garante que as novas investidas diplomáticas dêem frutos. Esta segunda-feira foi exemplo de como tudo está igual à superfície. Os ministros russo e iraniano dos Negócios Estrangeiros repetiram em Moscovo o que dizem há meses sobre a guerra na Síria. “Se alguns dos nossos parceiros acreditam que é necessário exigir à partida que, no fim de um período de transição, o Presidente [Assad] tenha de abandonar o seu posto, para a Rússia esta posição é inaceitável”, disse Lavrov, citado pela agência russa Sputnik. “Os nossos estados têm uma posição comum sobre a regulação da crise na Síria”, acrescentou Zarif.

Horas antes, aterravam em Damasco seis novos MiG-31, parte de uma remessa de oito caças encomendados por Assad em 2007 ao Governo russo. São da mesma família dos caças que bombardeiam Duma, quando os helicópteros e as bombas-barris não são do interesse do regime. Lavrov, em Moscovo: “[A solução para a Síria] pode apenas ser pacífica, política e diplomática, e só se pode atingir entre as facções sírias, sem interferências do exterior.”

Sugerir correcção
Ler 49 comentários