Fuck tha police, isto não é escapismo de Verão

Straight Outta Compton, sobre a ascensão e queda dos N.W.A., é um dos sucessos do Verão americano - com ecos de tensão racial e violência policial.

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A história filmada de Ice Cube, Dr. Dre, Eazy-E, DJ Yella e MC Ren aterra numa altura em que o hip hop é o mainstream DR

“Quem me dera que este fosse um filme de época”, desejou sob uma estrela de Hollywood o realizador F. Gary Gray a propósito do sucesso inesperado do Verão americano, Straight Outta Compton, sobre a ascensão e queda dos N.W.A., aliás Niggaz Wit Attitudes. Straight Outta Compton estreou-se há uma semana como um êxito de bilheteira a cheirar a blockbuster, mas em Compton não mora o escapismo de Verão. O filme espelha não só um grupo seminal do hip hop e do gangsta rap, que ajudou a virar as atenções das rimas da East Coast para a West Coast, mas também um dos temas mais urgentes da América de hoje – as relações raciais, com Ferguson e I can’t breathe a ecoar ao fundo.

F. Gary Gray gostava mesmo “que pudéssemos olhar para trás e dizer ‘Ei, lembram-se quando estas coisas costumavam acontecer? Ainda bem que mudaram’”, como disse ao Los Angeles Times sobre a violência policial e a situação dos afro-americanos. Mas o realizador, sobretudo conhecido pelos vídeos dos Cypress Hill, Outkast, de Ice Cube (e também o primeiro filme do rapper, Friday) e talvez menos pelos também seus Um Golpe em Itália e O Negociador, sabe que a leitura do seu filme terá sempre um subtexto actual. “Straigh Outta Compton é também - irritante e ultrajantemente – saído de 2015”, confirmou o crítico de cinema Richard Brody na New Yorker.

Gray filmou uma parcela da cultura urbana que conhece bem. Cresceu a poucos quilómetros de Ice Cube, fez também o percurso das ruas da exclusão para a expressão artística, mas viu “que havia uma história maior do que o grupo e a música”. E essa é a história de Compton como uma amostra do que eram as relações de poder entre polícia e jovens negros no final dos anos 1980/início dos anos 1990. Assim “também se tem uma noção melhor de por que é que criaram este tipo de música”, diz Gray. “Não eram só um monte de putos malcriados a fazer porcaria” e cujo primeiro álbum, homónimo do filme agora lançado, seria dupla platina e traria das ruas para as ruas e playgrounds Fuck tha Police, Gangsta Gangsta ou Boyz n the Hood (escrita por Ice Cube e que viria a ser título do filme de John Singleton com Ice Cube – e Singleton foi, aliás, um candidato a realizar Straight Outta Compton).

A história filmada (e incompleta, mas lá iremos) de Ice Cube, Dr. Dre, Eazy-E, DJ Yella e MC Ren é um objecto que aterra numa altura em que o hip hop é o mainstream da cultura americana e que BlackLivesMatter é um hashtag e um movimento. “Foi através da nossa música que as pessoas começaram a perceber o problema dos jovens negros e da polícia”, defende Ice Cube. “O nosso impacto foi mostrar às pessoas que têm voz”.

Straight Outta Compton não é bem um OVNI no mercado cinematográfico americano, mas é “uma sacudidela cinematográfica que incinera os velhos preconceitos sobre que tipo de filmes é comercialmente viável”, defende a Variety, que brinca que “o único superpoder que alguém demonstra no ecrã é a capacidade de tecer poesia nas letras a partir do desespero urbano”. Um filme rated R (classificação que obriga que os sub-17 sejam acompanhados por um adulto) da Universal (a mesma de 8 Mile, de 2008), fez 54 milhões de euros no fim-de-semana de estreia, a quinta melhor bilheteira de sempre de Agosto. O público quis ver o grupo de outrora, os milionários de agora e talvez algo mais.

Na grande Los Angeles há os bairros da afluência, do sol e dos sumos detox e há os territórios das drogas, das rusgas e dos battering rams – tanques urbanos usados pela polícia para destruir as casas da cocaína crack. É uma das primeiras cenas do filme, relata a imprensa americana, uma imagem que a Compton dos anos Reagan tem bem presente. Antes do ataque a Rodney King (1991) e dos motins de LA (1992), Ice Cube escreve uma rima num autocarro escolar em que os outros miúdos brancos ouvem Tears for Fears. Quase 30 anos depois, ali vive-se uma vida onde até na morte são precisos vidros à prova de bala - como os da funerária de Compton onde esteve há semanas o diário britânico Guardian, à boleia do filme.

Ainda sem data de estreia para Portugal, Straight Outta Compton é também um retrato algo tipificado, segundo alguma da crítica americana. Focado no rags to riches, na ascensão dos underdogs e na sua intervenção social, é menos claro ou mesmo omisso nos lados mais polémicos das suas letras – a homofobia, o racismo e a misoginia. É também ignorado o rol de ataques a mulheres por Dr. Dre, nomeadamente o infame espancamento da apresentadora de televisão da Fox Dee Barnes, e o sucesso é servido com as expectáveis cenas orgiásticas com mulheres e inebriação.

Com Dre, Ice Cube e a viúva de Eazy-E, Tomica Woods-Wrigth como produtores executivos, filma-se a reconciliação entre os membros sobreviventes do grupo após a sida e a morte resultante das suas complicações de Eazy-E e o sucesso e riqueza do actor e argumentista Ice Cube e do produtor e multimilionário Dr. Dre, dono dos seus próprios auscultadores (Beats by Dre, empresa entretanto vendida à Apple). A versão inicial do filme tinha mais uma hora e Gray espera lançá-la e o que fica de fora terá de esperar até ao director’s cut.

Entretanto destroem-se alguns gabinetes, mostra-se a força de palco e a soberba da juventude provocadora. A música tanto é a original quanto a dos actores (o filho de Ice Cube interpreta o papel do pai) e não se esquece o desafio Às autoridades num concerto em Detroit com o incontornável Fuck tha Police. O que fica também para depois dos créditos finais de Straight Outta Compton é a extrema riqueza e os outros dilemas da cultura hip hop (plasmados na televisão em versão novela na série de TV Empire, por exemplo).

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