Na luta de poder interna dos taliban, quem paga com sangue são os afegãos

Grupo extremista fez dezenas de mortos e centenas de feridos em Cabul. Estes ataques devem repetir-se até que a nova liderança taliban recupere o controlo total sobre os seus combatentes.

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A história das divisões internas nos taliban antecipa um período de grande instabilidade no Afeganistão Shah Marai/AFP

Sexta-feira foi o dia mais sangrento no Afeganistão desde 2011. Os taliban lançaram uma vaga de três grandes ataques com explosivos em Cabul que, ao todo, mataram pelo menos 50 pessoas e feriram centenas.

O primeiro, um camião recheado de explosivos, atingiu uma zona residencial ainda durante a madrugada. Aí morreram mais de 15 pessoas e outras 250 ficaram feridas. Já durante a tarde, um bombista suicida fez-se explodir entre uma multidão de recrutas da polícia que regressavam de férias: 26 mortos e 28 feridos. O último ataque aconteceu numa base usada pelas forças especiais do exército norte-americano. Nova explosão e troca de tiros deixaram mortos um soldado da NATO e oito agentes de segurança privados.  

Não são casos isolados. As Nações Unidas revelaram na semana passada que já mais civis foram afectados pela violência no Afeganistão em 2015 do que em qualquer momento da invasão norte-americana de 2001. Quase 5000, entre vítimas e feridos, sobretudo consequência de um grande aumento de ataques suicidas e a edifícios de segurança.

A razão para a onda de violência no Afeganistão é clara. Os taliban, há muito divididos sobre um processo de paz embrionário com o Governo de Cabul, estão agora em guerra aberta pela sucessão do seu fundador e guia espiritual, o mullah Omar. Enquanto o grupo se mantiver fracturado, é provável que se repitam ataques como o de sexta-feira. A liderança tradicional dos taliban reivindicou os ataques na zona residencial e à base norte-americana, mas não à escola da polícia de Cabul. Restam poucas dúvidas de que se trata de uma jogada de poder no seio do grupo. “A pergunta é: quem é que está a enviar a mensagem?”, diz à Reuters Thomas Ruttig, analista de segurança no país. 

Já existiam fracturas nos taliban enquanto Omar era vivo, mas a sua presença unificadora silenciava os comportamentos mais drásticos. Com a morte do fundador do grupo, em 2013, a liderança dos extremistas passou, na prática, para Akhtar Mohammad Mansour, o braço direito de Omar. Pareceu assim óbvio que o mais antigo concelho de líderes taliban, a Shura de Queta, escolhesse Mansour para o comando quando o grupo admitiu a morte de Omar, na semana passada. Mas esta sucessão “natural” esconde, na verdade, a luta pela liderança de um grupo que já não controla todos os seus combatentes.

A grande fractura

Importa conhecer os últimos dois anos na liderança do grupo, contados por Sami Yousafzai, que escreve sobre os taliban na Newsweek, e também pela revista Foreign Affairs. Omar era uma figura de tal maneira reverenciada que as notícias da sua morte foram partilhadas apenas por um punhado de membros da Shura. Era um período crítico para os taliban e a liderança decidiu manter a morte de Omar em segredo: seis meses depois inaugurava-se o gabinete dos taliban no Qatar, a partir de onde se conduziriam as negociações de paz entre o grupo, Estados Unidos e Governo de Cabul. As negociações falharam pouco depois, mas o grupo assumia o caminho da pacificação.  

Primeiro sinal de fractura interna. Mansour e o então líder das forças armadas dos taliban, Qayyum Zakir, tinham disputas intensas sobre o processo de paz. A interpretação de Zakir, partilhada hoje pelos taliban no Norte e Leste do Afeganistão, mais combativos contra o Governo, e por uma parte importante dos combatentes, era a de que Mansour queria assinar um acordo de partilha de poder e divisão de território, e não de governo islâmico do país. O desgaste causado pela morte de Omar e a força de Mansour dentro da Shura acabaram por afastar Zakir da liderança.  “Sem o mullah Omar, odeio tudo”, terá dito o combatente veterano.  

Sem a oposição de Zakir, Mansour aproveitou o nome de Omar para dar legitimidade à sua liderança junto dos comandantes, que não sabiam que o fundador do grupo morrera. O líder de facto foi consolidando poder na Shura e conquistou uma base poderosa de doadores no Golfo. Isto à medida que avançavam pequenas reuniões secretas, na China e Europa, entre enviados dos taliban e membros do Governo afegão com vista a retomar as negociações de paz abandonadas em 2013. Mas este processo continuava polémico. Os combates diários entre exército e extremistas prosseguiam e muitos comandantes encaravam com desconfiança as actividades dos negociadores que viviam luxuosamente no Qatar.

Este sentimento tinha duas vozes poderosas na liderança. O filho de Omar, Yaqub, e o co-fundador dos taliban, Abdul Ghani Baradar. Os dois tornaram-se as duas figuras mais proeminentes entre os que se rebelaram abertamente contra a nova liderança, no mês passado. Os planos de Mansour de acelerar o processo de negociações de paz culminaram nos primeiros dias de Julho com a primeira reunião oficial entre taliban e Governo afegão em Islamabad. Washington e China assistiram às negociações e admitiram publicamente que se tratava de um passo importante para a região – o Paquistão teve um papel importante no encontro, o que sugeria um virar de página com o vizinho Afeganistão, passados anos de acusações mútuas de patrocinarem grupos terroristas.  

Internamente, foi o descalabro. Yaqub começou a reunir combatentes para a sua causa e desafiou abertamente a liderança de Mansour. Vários comandantes regionais acusaram ainda a delegação que se reuniu em Islamabad de serem “fantoches” do Paquistão e o grupo tornou-se contraditório. Depois da primeira reunião de paz, os taliban lançaram um ataque ousado ao Parlamento de Cabul.

A nova liderança taliban suspendeu as negociações de paz ao oficializar a morte de Omar. De acordo com a Foreign Affairs, Mansour está a tentar consolidar o seu mandato. O seu principal receio é que o grupo se quebre e que haja uma hemorragia de militantes para células independentes e até para o autoproclamado Estado Islâmico, que se estabeleceu recentemente no Afeganistão.  

A revista The Diplomat resume o dilema da liderança de Mansour: “Durante anos, os combatentes travaram uma guerra sob a bandeira da jihad, daí que lhes seja difícil falar com o ‘Governo fantoche’. Para além disso, o Estado Islâmico é agora uma alternativa e a liderança dos taliban receia perder a sua posição como o único grupo armado e unido de oposição a Cabul se se mantiver nas negociações.”

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