Erdogan e a sua “guerra em duas frentes”

Reserve as sextas-feiras para ler a newsletter de Jorge Almeida Fernandes sobre o mundo que não compreendemos.

Cedeu a Turquia à pressão norte-americana para integrar a guerra contra o Estado Islâmico (EI), tirando as conclusões do recente acordo nuclear entre Washington e Teerão? Ou o volte-face da estratégia turca, ao bombardear o EI, é uma cortina de fumo para impedir a criação de uma área autónoma curda na Síria? Ou imaginou o Presidente Tayyip Erdogan uma “manobra magistral” para impor a sua supremacia após o fiasco nas eleições legislativas de 7 de Junho? Talvez um pouco de tudo.

O acordo é aparentemente vantajoso para Washington e Ancara. Os americanos precisam simultaneamente do Irão e da Turquia para combater o EI. E têm o desígnio de atenuar a linha de fractura entre sunitas e xiitas e também de equilibrar, a seu favor, a influência de uns e de outros.

O acordo de Viena sobre o nuclear reforçou o estatuto do Irão e enfraqueceu Ancara, que tem acumulado reveses estratégicos desde há três ou quatro anos. A Turquia foi durante décadas o aliado indispensável no flanco sul da NATO. Tem-se afastado da aliança ocidental, provocando a desconfiança americana. Entretanto, o acordo com o Irão, aliado de facto dos americanos no combate ao EI, desvalorizou o peso e a margem de manobra de Ancara. Será uma primeira razão da “rectificação” da estratégia turca.

Ao autorizar os Estados Unidos a utilizar as bases aéreas de Incirlik e de Diyarbakir, os turcos obtêm em troca a promessa de criação uma zona de exclusão aérea, o que muito lhes interessa. A justificação formal da no-fly zone é proteger da aviação síria os rebeldes amigos da Turquia ou dos americanos. Ancara tem outro interesse. É um meio para impedir que os curdos sírios da União Democrática Curda (PYD), estreita aliada dos curdos turcos do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), consolidem uma área territorialmente contígua junto da fronteira turca, ligando o Curdistão sírio ao iraquiano. É uma obsessão estratégica de Ancara.

Para os EUA, juntar o Irão e a Turquia na aliança anti-EI — de que nenhum dos dois faz formalmente parte — é uma vantagem importante. Dado que Ancara e Teerão têm objectivos políticos opostos na questão síria, os EUA poderão reforçar a sua margem de manobra.

Mas americanos e europeus têm de gerir um problema complicado. Se a Turquia se lança numa “guerra em duas frentes” — contra o EI e os curdos —, todos sabem que a sua prioridade são os curdos. Ancara não declarou guerra ao jihadismo, mas a “todas as ameaças terroristas”. Escreveu o diário Sabah, dirigido pelo genro de Erdogan, que o braço armado do PYD “é mais perigoso do que o Daesh” [EI]. Para Ancara, o EI é uma ameaça passageira que se dissipará quando o regime de Assad cair. Ao contrário, os curdos estão para ficar.

Atacar bases do EI na Síria e servir-se disso para atacar o PKK no Iraque não é uma ideia que agrade a americanos, europeus e países vizinhos que não querem mais um foco de conflito armado. Os curdos são amigos tradicionais de Washington e aliados eficazes na guerra contra o EI. Será o primeiro ponto de fricção entre turcos e americanos.

A política interna
No plano da política interna o quadro propicia teses conspirativas. Sublinham analistas que Erdogan e o seu primeiro-ministro, Ahmet Davutoglu, têm a noção de que o seu Governo, depois de perder o rumo no campo diplomático, ficou encerrado num impasse no plano interno quando as eleições de Junho retiraram a maioria absoluta ao seu Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP).

Explica o analista turco Ömer Taspinar, investigador da Brookings Institution e colunista do diário Zaman, que Erdogan “matou três coelhos de uma cajadada”: renovar as relações com Washington; fazer guerra ao EI para poder atacar o inimigo que quer eliminar, o PKK; e criar condições para restabelecer a sua primazia na cena política turca, através de eleições antecipadas.

As eleições de Junho tiveram três efeitos. Puseram em xeque o plano de Erdogan para impor um regime presidencialista à sua medida. Fizeram entrar em força no Parlamento o partido pró-curdo de Selahattin Demitras — Partido Democrático dos Povos (HDP) — e criaram a necessidade de formar um governo de coligação, o que confirmaria o sistema parlamentarista.

Entretanto, seis anos de negociações entre o Governo e o PKK — uma iniciativa de Erdogan — parecem ter chegado ao fim e ameaçam um regresso da violência. É um círculo vicioso: o AKP deixou de ter força para impor um acordo aos nacionalistas turcos, enquanto o PKK, graças ao combate contra o EI, se terá tornado demasiado forte para o AKP com ele poder negociar, resume o analista Mustafa Gurbuz.

Demitras acusa Erdogan de “arrastar o país para uma guerra civil”, a fim de reconquistar a sua maioria absoluta através de um “clima nacionalista e militarista, dando a impressão de querer travar uma luta conjunta contra o terrorismo”.

O cenário de eleições antecipadas no Outono é tido como muito provável. Erdogan apareceria como “homem providencial” e “protector da nação”. O HDP ficaria fora do Parlamento e Erdogan voltaria a sonhar com o presidencialismo.

O bombardeamento de 24 de Julho tem, assim, muitas facetas. De momento, permanecemos no domínio da especulação, porque há demasiados jogadores com interesses contraditórios e desígnios escondidos. Para perceber um pouco mais teremos de esperar que, finalmente, mostrem o seu jogo.

Sugerir correcção
Comentar