"Vergonha”, gritou-se no Parlamento no dia em que a lei do aborto foi alterada

Direita aprovou taxas e consulta obrigatória para o aborto e “espezinhou” as mulheres

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As galerias foram evacuadas depois dos gritos "vergonha" a propósito do aborto Rui Gaudêncio

Foi sob gritos de “vergonha” que a direita aprovou a criação de taxas moderadoras para as mulheres que fazem interrupção voluntária da gravidez e a obrigatoriedade de frequentar consultas de aconselhamento psicológico e social, assim como abre a possibilidade de presença nas consultas de médicos objectores de consciência – que antigamente estavam afastados.

"Vergonha, vergonha, vergonha." Um grupo de pessoas manifestou-se nesta quarta-feira no momento da votação relativa às alterações à regulamentação da lei do aborto. O grupo acabou por ser retirado pelos seguranças das galerias, depois de a presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves, ter lembrado que não é permitido manifestações naquele espaço. Com cartazes, o grupo foi saindo e gritando: "A luta continua".

Quando Assunção Esteves anunciou o resultado da votação final global do último diploma sobre o assunto, igual à maior parte das votações na especialidade – com a excepção de um voto de abstenção da centrista Teresa Caeiro na proposta do PS de informação à grávida sobre os apoios sociais – a palavra ‘vergonha’ ecoou ainda com mais força. Durante uns momentos, alguns deputados do PSD e do CDS levantaram-se de dedo em riste, ralhando com as bancadas da esquerda e pedindo a intervenção e Assunção Esteves.

Mas a presidente da Assembleia da República limitou-se a pedir calma e a dizer: “Fomos eleitos para sermos livres de seguirmos as nossas opiniões, senhores deputados. Pedia serenidade, estamos em votações e temos casos sempre mais emocionais do que outros.”

No debate sobre o pacote de alterações às regras da interrupção voluntária da gravidez, decorrentes de uma proposta da Iniciativa Legislativa de Cidadãos, da esquerda ouviu-se uma defesa exaltada dos direitos da mulher e dos benefícios da despenalização do aborto, votada em referendo em 2007, assim como uma crítica cerrada ao facto de a direita trazer o assunto para votação na derradeira sessão da legislatura. E ficou a promessa de reverter o que hoje foi aprovado logo no início da próxima legislatura, depois das eleições.

A socialista Isabel Moreira subiu à tribuna para chamar “medíocre” ao legislador, que está “imbuído de maldade pura” e a fazer “terrorismo psicológico sobre a mulher”, e acusar a direita de fazer “tábua rasa da realidade ouvida” nas audições que a comissão de assuntos constitucionais fez.

Numa intervenção aplaudida pelas bancadas do PS, PCP e BE e sob protestos do PSD e CDS, a deputada criticou as mudanças nas regras dos objectores de consciência, que passam a poder estar presentes nas consultas com as mulheres grávidas que pretendem abortar. Disse que o acompanhamento psicológico e social no período de reflexão por um profissional de saúde (que até pode ser um técnico de uma IPSS) vai contra o princípio da reflexão.

“O tempo de reflexão é tempo dela e só dela”, apontou, considerando que essa medida “menoriza” e “infantiliza” a mulher – argumentos repetidos depois pela bloquista Helena Pinto, pela ecologista Heloísa Apolónia e pelo comunista António Filipe.

“Algemar as mulheres? Grosseria! Insensibilidade! Desfasamento da realidade!”, exclamou Isabel Moreira. “Para caçar votos, [a direita] caça mulheres!”, rematou. “Grande Isabel!”, gritou Pedro Nuno Santos quando a deputada desceu do púlpito. Ela respondeu com um piscar de olho cúmplice.

As críticas sucederam-se em catadupa. Helena Pinto apontou a “cedência aos sectores mais fundamentalistas da nossa sociedade” e considerou que a proposta “adultera o voto popular de 2007” e “altera a lei da IVG no sue espírito e forma”.

“É um retrocesso inadmissível para o estatuto das mulheres numa sociedade democrática”, disse a bloquista, lembrando que só 33 anos depois do 25 de Abril as mulheres deixaram de ser apontadas a dedo e levadas a tribunal por abortarem. Referiu as “mazelas” físicas e o sofrimento “no corpo e na alma” que o aborto clandestino deixou em milhares de mulheres.

Tal como fizeram Isabel Moreira e Heloísa Apolónia, a bloquista citou a monitorização que se tem feito da lei e as conclusões de que as mortes por IVG deixaram de existir, que o próprio número de abortos tem vindo a diminuir e está abaixo da média europeia. Por isso, concluiu, as alterações mais não são do que uma tentativa encapotada de “criar obstáculos ao processo da IVG”.

“O desígnio nacional que temos que ter é o combate ao aborto clandestino e esse combate está a ser feito pela lei”, defendeu Heloísa Apolónia dos Verdes. “Tenho pena que a última sessão desta legislatura seja usada para espezinhar as mulheres portuguesas”, afirmou enquanto as bancadas do PSD e do CDS batiam com os pés no chão de madeira do plenário. Heloísa prometeu: “Imediatamente no início da próxima legislatura é preciso corrigir esta asneira!” A promessa foi reiterada pelo deputado António Filipe.

O comunista acusou a maioria de “lançar a pedra mas esconder a mão” num “golpe legislativo acompanhado por uma enorme cobardia política”. “A direita não tem a coragem política de dizer que quer voltar à criminalização.”

A direita optou pelo tom professoral. A centrista Teresa Anjinho defendeu que  as alterações à IVG não são sobre a matéria sujeita a referendo, mas sobre taxas moderadoras, objecção de consciência e acompanhamento – que a esquerda também aprovou há alguns anos, lembrou. “Não vale a pena gritar, não vale a pena exagerar e não vale a pena desinformar”, provocou a deputada. “Limita-se a proteger a equidade no SNS e a dar mais apoio às mulheres que recorrem à IVG.”

A “melhoria das condições em que a mulher irá tomar uma decisão tão difícil na sua vida”, foi o argumento também explorado por Carlos Abreu Amorim.

 

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