Rafael Marques: "Surpreenda a nação, liberte-os"

Rafael Marques escreveu uma carta ao Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos. Pede a libertação dos activistas presos em Junho.

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O jornalista e activista político Rafael Marques Herculano Coroado/Reuters

O jornalista e activista político Rafael Marques escreveu, na sexta-feira passada, uma longa carta ao Presidente de Angola, que publicou no Maka Angola, o seu jornal online. Marques, que em Maio foi condenado a seis meses de prisão com pena suspensa por calúnia e difamação a empresas e generais retratados no seu livro Diamantes de Sangue: Tortura e Corrupção em Angola, apela à libertação dos jovens activistas presos a 20 de Junho.

Ontem, a carta já tinha 128 mil visualizações no Facebook, disse Rafael Marques ao PÚBLICO, por email. Reacções oficiais, e apesar de nas primeiras linhas fazer um apelo ao “diálogo”, não teve: “Não espero nenhuma a não ser uma queixa do procurador-geral da República, o general João Maria de Sousa”.

Explicou a razão de escrever, agora — um mês depois destas prisões, fala a José Eduardo dos Santos da perenidade da vida e da ideia de deixar o poder. “Como crítico, entendi ser necessário informar o Presidente sobre os perigos que corre ao permitir que o poder judicial crie ‘inventonas' golpistas. É preciso aconselhá-lo sobre como amanhã poderá deixar o poder de forma airosa.”

Excertos da sua carta a Eduardo dos Santos:

“Senhor presidente, a improbabilidade de nos encontrarmos leva-me a tentar conversar consigo por esta via. Espero que me responda. O tempo é de diálogo. Apesar de ser um crítico acérrimo do seu modo de governação e do consequente sofrimento da maioria do povo angolano, admiro-o pela forma estóica como mantém o poder e compreendo muito bem a sua angústia perante a possibilidade de o perder.

Escrevia o Padre António Vieira: ‘Pulvis es, tu in pulverem reverteris’: Sois pó, e em pó vos haveis de converter. Sois pó, é o presente; em pó vos haveis de converter, é o futuro. É esse futuro que tentais evitar a todo o custo e do qual resulta a angústia que menciono.

Durante algum tempo da minha infância, nutria por si um sentimento de terror.

Sabia, nessa altura, quando o senhor presidente agendava uma saída da sua residência oficial na estância balnear do Futungo de Belas. Nessas ocasiões, por volta da meia-noite ou um pouco mais tarde, sentia a casa a tremer e a mãe, alarmada, vinha retirar-me do quarto para o quintal. A guarda presidencial transportava para a rua onde até hoje vive a mãe, em camião apropriado, um tanque de guerra soviético. (...) A minha infância ficou marcada por esse paquiderme de aço que, com um breve gesto, poderia desfazer a nossa casa e família, mesmo sem querer. (...)

Em 1992, tive o privilégio de, pela primeira vez, ir a uma festa sua de aniversário, no Futungo de Belas. A minha expectativa era grande. Ia observar o convívio entre os dirigentes do meu país. Quando o senhor se retirou da festa, vi (...) governantes e comensais a saquearem o que havia no banquete. (...) Saí do Futungo de Belas muito mal impressionado com o tipo de indivíduos que o auxiliavam e continuam a auxiliar na governação. (...)

Em 1999, quando o senhor presidente ordenou a minha detenção, por se ter sentido ofendido com os meus escritos, passei a compreendê-lo melhor: é um homem poderoso, mas inseguro. Apreciei o gesto do seu secretário que me visitou para saber do meu estado de saúde e de espírito na cadeia. (...)

Desta vez, senhor presidente, não envie o seu secretário para saber da saúde dos jovens. O procurador-geral da República, general João Maria de Sousa, precipitou-se ao anunciar publicamente, enquanto zelador da legalidade, que os jovens estariam a preparar um golpe de Estado contra si. Desacreditou o que resta de seriedade deste órgão judicial. O general João Maria de Sousa é muito mau. É péssimo a servi-lo. A descrença no sistema judicial não contribui para a a sua segurança. (...)

Não comprometa o sistema judicial. Não comprometa a civilização e o direito. (...)

Gostaria, senhor presidente, que considerasse o meu pedido para ordenar a libertação incondicional dos seguintes cidadãos: Afonso Matias “Mbanza Hamza”, Albano Bingobingo, Arante Kivuvu, Benedito Jeremias, Domingos da Cruz, Fernando Tomás “Nicola Radical”, Hitler Jessia Chiconda “Samusuku”, Inocêncio Brito “Drux”, José Hata “Cheik Hata”, Luaty Beirão, Nelson Dibango, Nito Alves, Nuno Álvaro Dala, Osvaldo Caholo, Sedrick de Carvalho e o capitão Zenóbio Zumba.(...)

Seria um acto de coragem política e de moralidade constitucional devolver os referidos cidadãos à liberdade.

Como o mais alto magistrado da Nação, deve manter a reserva moral para corrigir actos institucionais danosos para o Estado de direito e, sobretudo, para a relação entre este e a sociedade em geral. (...)

Senhor presidente, surpreenda a nação. Surpreenda-nos pela positiva e será reconhecido por isso. (...)

Senhor presidente, proteja-se com a ética da Constituição e ouvindo os seus críticos, que são os que menos mal lhe desejam.”
 

   

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