TAP: Sol para os estrangeiros e trabalho para designers e artistas

Setenta anos de TAP e os criativos que fizeram a sua (e a nossa) imagem – o “milagre de Fátima”, o primeiro grande trabalho de Maria Keil em azulejo e outras histórias no Mude, em Lisboa.

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Em 1968, a TAP inaugurou a sua loja em Nova Iorque, com um painel de Maria Keil novo em folha e os embaixadores a posar para a fotografia. Instalou-se na 5.ª Avenida com pompa e circunstância – e com um Galo de Barcelos e uma minhota. Ao longo de 70 anos, a TAP confundiu-se com a identidade portuguesa e com o jogo costumeiro entre tradição e modernidade. As lojas e delegações eram como montras do país e a empresa perfilava-se como um “grande encomendador” que dinamizou algum do melhor design, arquitectura e artes portuguesas.

“A primeira vez que Maria Keil trabalha sobre azulejo é para uma delegação da TAP”, a de Paris, postula Bárbara Coutinho, directora do Museu do Design e da Moda (Mude). A TAP era voar com assistentes de bordo vestidos por Louis Féraud durante quase 35 anos – hoje vestem Alves/Gonçalves –, ir a delegações projectadas por Francisco Keil do Amaral, ser seduzido por anúncios com traços de Daciano Costa ou Eduardo Anahory ou comer em porcelana Vista Alegre. Essa memória e o não menos colorido presente estão no Mude a partir desta quinta-feira e até 1 de Novembro. Um “case study muito interessante para perceber a cultura de uma marca e a cultura do país”, atesta ao PÚBLICO Bárbara Coutinho.

A TAP é hoje o acumular dessa história, mas em parte está também a transformar-se noutra coisa – numa companhia aérea que já não é só portuguesa. O processo de privatização que se desenrolou nos últimos meses culminou em Junho, pano de fundo no ultimar de TAP Portugal: Imagem de um Povo. Sem causar turbulência, aumentou sim “a consciência da responsabilidade de estar a fazer a exposição”, diz Coutinho, também curadora da mesma.

O Mude fez um apelo aos portugueses para que lhe enviassem os seus objectos TAP perdidos nos baús que potencialmente pudessem integrar a exposição. São muito poucos os que chegaram aos expositores, porque se tratavam de objectos mais comuns e já conhecidos, guardados como “recordação”. “Serviu para perceber a afectividade que nos liga à TAP”, aproveita ainda assim Bárbara Coutinho.

A exposição, que ocupa todo o terceiro piso e que partiu de uma ideia do porta-voz da TAP, António Monteiro, há ano e meio para assinalar o 70.º aniversário da companhia, é ainda assim à partida um convite ao reconhecimento. Não só de imagens de marca, logotipos ou fardamentos, mas também de souvenirs de férias passadas – os talheres da viagem, os bonecos com trajes tradicionais que Maria Helena Cardoso tornou num fenómeno de popularidade no estrangeiro e que eram oferecidas aos passageiros desde 1946 (foram fabricadas até 2007), as malas que a mania do vintage devolveu às ruas.

Mas logo à entrada dos cinco núcleos em que se organiza a exposição, ingressamos noutra viagem. Uma tapeçaria de Maria Keil, depois uma outra, monumental obra de Fernando Lemos (depositada na Gulbenkian e que “não era vista há muitos anos”, segundo a curadora) pensada para a delegação de São Paulo – ambas feitas em Portalegre, ambas de artistas plásticos incontornáveis. “As lojas e delegações eram entendidas como uma espécie de pequenas embaixadas do país pelo mundo. Em todas as lojas eram convidados [a intervir] artistas portugueses – Querubim Lapa, Fernando Lemos, Maria Keil, Figueiredo Sobral, Luísa Bastos”, enumera Bárbara Coutinho na montagem da mostra. “Era através da arte e da criatividade que era mostrado um país e uma companhia que eram simultaneamente modernos, empreendedores, mas com raízes profundas de tradição e cultura.” A eterna dualidade da imagem construída do Portugal do Estado Novo.

Sabia-se que Francisco Keil do Amaral tinha feito algumas lojas da TAP, entre catálogos e consultas com historiadores da arquitectura portuguesa, mas uma investigação no âmbito da exposição por Carla Alferes Pinto, pós-doutoranda da Universidade Nova de Lisboa, confirma e mostra “desenhos nunca vistos” do arquitecto do Aeroporto da Portela e do Parque Eduardo VII para lojas estratégicas – Paris, Madrid, Lourenço Marques, Londres, Rio de Janeiro.

“É uma matéria não estudada. Aqui só levantámos um bocadinho o véu” sobre a relação de Keil do Amaral com a TAP, diz ainda a directora-comissária, deixando uma “pista que não está comprovada - mas parece-nos quase certo… não se sabe quem foi o autor do terceiro logotipo da TAP [que data de 1953-54] mas é muito provável que seja dele”.

 

Um avião e um sol

The sun of Portugal expects you”, convida um anúncio de 1954, desenhado por Eduardo Anahory, na revista Panorama. É um chavão, o do sol português para turista ver, mas que não vem acompanhado por mais texto, nem fotografias, muito menos quinas ou esferas armilares como noutra publicidade da época. Um avião e um sol, simplesmente coloridos e desenhados. No avião, uma flor vermelha na ponta de cada asa “que como portugueses associamos ao cravo”, comenta Bárbara Coutinho, mas duas décadas antes do seu tempo de floração revolucionária. O moderno arquitecto designer que projectou a sede da Fundação Gulbenkian ou o café Vá-Vá é mais um nome na lista dos autores a que a TAP recorreu, ao qual se junta o de Sebastião Rodrigues - cujo bilhete de 1970 tem um símbolo central circular e irregular em azul (voos nacionais) ou laranja (voos internacionais) que rompe com a tradição da representação linear das rotas de cada companhia.

“Os grandes encomendadores têm tendência a escolher as melhores autorias e protagonistas para fazer filmes publicitários, design de comunicação ou produto”, atesta Pedro Gentil-Homem. Um dos comissários científicos da exposição fala ao PÚBLICO quando se ultima a montagem em que algumas das peças vêm da sua colecção, em parte enriquecida durante o trabalho para a sua tese de doutoramento Sobre as nuvens: design para a companhia aérea de Portugal 1945-1979 (2014). Focou-se na célula do passageiro – o poroso mas muito delimitado espaço que ocupamos assim que tomamos posse temporária do nosso lugar para voar – e nos objectos que a rodeiam, design de comunicação incluído.

Os assentos, os tabuleiros, as pecinhas de um serviço de jantar de bonecos à escala humana feitos em melamina, os pesos e alturas medidos ao milímetro. Daciano Costa estabeleceu as bases e depois o Atelier Risco, com ele, desenhou para a campanha Spring Service em 1976 alguns desses objectos, começando pela publicidade. No pós-25 de Abril, a “liberdade cromática, que vai dos amarelos aos vermelhos, castanhos, passando pelos verdes e azuis, usada em todos os elementos de comunicação”. Os protótipos de tabuleiro, chávenas e pratos, coloridos numa inconfundível amálgama de tons 70s, estão numa vitrine ao fundo da galeria.

Essa célula do passageiro ganha contornos à medida de costumes bem portugueses no trabalho de um outro designer, Carlos Rocha. Trabalhou também na frente gráfica e a sua colecção é um dos contributos para a exposição. Está na altura de baixar os tabuleiros reclináveis e ver que “no tabuleiro da TAP - o que não era habitual noutros países - a chávena de café tinha de ser diferente da de chá” por causa do hábito dos cafés curtos “e tinha que haver espaço para a garrafa de vinho”, diz Coutinho sobre o protótipo de 1978 que o Mude mostra e que só em 1986 entrou em produção e levantou voo.

O tempo sopra também nas roupas, que se moldam ao sabor dos ares políticos. Há pompons farfalhudos nos chapéus a aludir às nazarenas, há o “uniforme tropical” que voou a partir de 1946 a fazer dos assistentes de bordo cicerones de um safari africano colonial. E há os três manequins e estudos atribuídos à importante costureira Ana Maravilhas (1959-63), em corte com o “carácter muito militar, ligado à linha imperial” e de “uma enorme elegância” e funcionalidade, que Bárbara Coutinho elogia.

Na década passada, foi a vez de Manuel Alves e José Manuel Gonçalves, vencedores do concurso exclusivamente nacional, vestirem o pessoal da TAP fazendo uma ponte, identifica Bárbara Coutinho, com o colorido rebranding da TAP, com destaque à fuselagem dos próprios aviões, pelos criativos da agência Brandia (Carlos Coelho, Gonçalo Cabral, Paulo Rocha, 2005/6).

“A TAP contribuiu para a divulgação do design em Portugal” não só dos autores já reconhecidos mas também de muitos nomes menos célebres, resume Pedro Gentil-Homem, caminhando entre momentos TAP pelo piso empoeirado do museu lisboeta.

Muitos desses momentos estavam guardados no museu da transportadora aérea, mas também no Sistema de Informação para o Património Arquitectónico, na Gulbenkian, no Arquivo Municipal de Lisboa, nos Arquivos da RTP, na Torre do Tombo ou no Aero Club de Portugal. Orçada em 100 mil euros, a exposição é custeada em 75% pelo Mude, inscritos na programação do museu, e os 25 mil euros restantes vêm da TAP, que recorreu a apoios de empresas com as quais trabalha, dos cafés à banca. 

Ao longo das suas sete décadas, a TAP não só trabalhou com nomes centrais da criação portuguesa como convocou centros de produção como Portalegre ou as porcelanas da SPAL ou da Vista Alegre. Era a empresa orgulhosa de ser a primeira na Europa a voar só com jactos, mas cujos interiores tinham caravelas e cidades amuralhadas. A empresa que contratava a reputada agência norte-americana Delehanty, Kurnit & Geller, que sugeria em 1967 aos turistas - “Fale com as pessoas que viram um milagre”, os “idosos do centro de Portugal” que “viveram” o “Milagre de Fátima”. Para Pedro Gentil-Homem, a companhia aérea é um “espelho de Alice, de dois sentidos” – vemos nela o país, mas também o que vêem de nós e como nos vemos nele. 
 

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