Fatima enterra hoje um pé, uma perna e um braço do filho Dzemal

Foi há 20 anos. Mais de oito mil homens e rapazes foram mortos pelas forças sérvias da Bósnia. A ONU chamou-lhe genocídio. Uma palavra que divide este país retalhado em sectores e onde a tensão étnica não desaparece.

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Uma mulher muçulmana bósnia junto da sepultura de um familiar em Potocari DIMITAR DILKOFF/AFP
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Caixão de uma das 136 vítimas identificadas e que vão ser sepultadas este sábado DIMITAR DILKOFF/AFP

O muçulmano bósnio Kadrija Music foi enterrado três vezes e pode voltar a ser mais. Primeiro, quando foi morto, no massacre de Srebrenica; depois quando a guerra acabou e os sérvios bósnios levantaram os corpos com bulldozers e tractores e os despejaram em valas comuns; a seguir quando cinco partes das suas ossadas apareceram em lugares diferentes, alguns distantes entre si 32 quilómetros.

“Somos a primeira geração da civilização humana que desenterrou corpos para os dispersar. Tanto quanto sei, isto nunca tinha acontecido em nenhum lado”, disse ao jornal The Guardian o presidente do instituto bósnio de desaparecidos, Amor Masovic, que lidera a equipa que está a escavar as valas comuns à volta de Srebrenica e a identificar, através de ADN, os restos mortais dos que morreram no massacre de há 20 anos.

Foi Masovic que contou a história dos três enterros de Music. Se outras ossadas aparecerem, haverá novos enterros, agora na mesma sepultura, no cemitério memorial de Potocari, onde há 20 anos existia um campo das Nações Unidas que, a certa altura, os muçulmanos bósnios acreditaram ser um lugar seguro mas não foi.

Masovic contou que procurar os corpos é um trabalho difícil por razões emocionais — quase todos os dias recebe telefonemas de familiares de desaparecidos, querem saber se já há mais nomes. E por outros motivos: à volta de Srebrenica foram identificadas 93 valas comuns, as ossadas não estão completas e muitos ossos estão partidos; e além disso há zonas onde as equipas ainda não podem ir porque a desminagem do terreno ainda não está completa.

À medida que os ossos vão surgindo, mais um nome é riscado na lista de 8372 nomes — 7100 já foram sepultados, 1272 continuam desaparecidos.

Todos os anos, no aniversário do massacre, prestam-se homenagens às vítimas e fazem-se novos funerais em Potocari. No sábado, Fatima enterra o filho mais novo, Dzemal, que tinha 17 anos em 1995. “Pude vê-lo. Tem a bacia, um pé, uma perna, um braço... é triste”, disse à AFP. O marido e o filho mais velho, Seval (21 anos), já estão em Potocari. O mais novo, Dobrak, que tinha 15 anos, ainda não foi encontrado. “Como ele era menor pensei que não lhe fizessem mal”, disse Fatima Aljic, de 66.

O massacre de Srebrenica foi o maior crime cometido na Europa depois da II Guerra Mundial. Durou 14 dias, dizem os relatos históricos, com a perseguição e morte de muçulmanos bósnios, às mãos do exército sérvio da Bósnia, a começar a 10 de Julho.

Nesse período de tempo, oito mil homens e rapazes foram assassinados depois de as forças sérvias bósnias terem avançado para esta cidade da zona oriental e penetrado em território que, no papel, estava sob a protecção dos capacetes azuis das Nações Unidas.

"Genocídio", disse a ONU
Alguns dos mortos desaparecidos estavam no campo de Potocari, gerido pelos holandeses, que o Tribunal Penal Internacional de Haia (um órgão da ONU) considerou culpados pela morte de 300 das vítimas — deveriam tê-los protegido, mas cederam à pressão e mandaram-nos para fora do campo; no recinto, viviam 26 mil refugiados, a maior parte mulheres e crianças. “No dia 13 de Julho [de 1995], o Dutchbat [contingente holandês] não deveria ter permitido que as pessoas saíssem das suas instalações”, considerou a juiza Larissa Elwin.

“Os obuses caíam por todo o lado. Havia feridos e mortos nas ruas”, contou Fatima sobre a entrada dos sérvios em Srebrenica, alguns dias antes do início do massacre. “Muita gente corria, fugia. Os homens e os rapazes fugiram para a floresta”.

Como fizeram quase todos os homens face à aproximação dos sérvios bósnios, o marido de Fatima partiu em direcção ao território controlado pelos muçulmanos. Mais de oito mil foram apanhados, entre 11 e 25 de Julho de 1995.

Escreveu o juiz do Tribunal de Haia, Theodor Meron, em 2004: “Ao procurarem eliminar uma parte dos muçulmanos da Bósnia, as forças sérvias da Bósnia cometeram genocídio. O intuito era a extinção dos 40 mil muçulmanos bósnios que viviam em Srebrenica. Despojaram todos os homens muçulmanos, militares e civis, velhos e novos, de todos os objectos pessoais e que lhes servissem de identificação e, deliberada e metodicamente, mataram-nos pela simples razão de terem aquela identidade”. Foi a primeira vez, desde os crimes nazis, que a palavra foi usada para definir um crime de guerra na Europa.

O fim da guerra na Bósnia, que se arrastou entre Abril de 1992 e Dezembro de 1995 — e que se inseriu num conflito maior, em todo o território da antiga Jugoslávia —, pôs fim aos combates e mortes, delimitou novas fronteiras para os povos, mas não acabou com a tensão étnica.

Como explicou à AFP o director do grupo de reflexão Serviço Social Abrangente, Srecko Latal, o conflito sempre permaneceu a nível político e os dirigentes nunca renunciaram aos objectivos da guerra, querem ter cada um o seu canto e os muçulmanos sonham com o passado de unidade territorial onde os seus direitos eram respeitados e protegidos. As diferenças e as rivalidades neste país de 3,8 milhões de habitantes (40% muçulmanos, 30% sérvios cristãos ortodoxos, 10% croatas católicos) ganham intensidade quando se aproximam datas como a do massacre de Srebrenica.

“Os nacionalistas aplicam políticas autistas e criam tensão permanente”, disse à agência noticiosa francesa a analista política Tanja Topic. “Dividiram o país em zonas étnicas e de interesses, controlando cada um deles totalmente os fluxos financeiros, e os chefes das tribos étnicas são os senhores da vida e da morte”, diz Topic, para quem o Acordo de Dayton, que impôs a paz, definiu um sistema de governação tripartida mas dividiu o território em entidades, é em parte responsável pelo estado do país — desagregado e inexistente como entidade unida. A Bósnia é um dos mais pobres países da Europa, com uma economia em decadência, uma taxa de desemprego de 40% e um projecto para sair da crise que passa pela adesão à União Europeia (com o apoio financeiro que essa adesão pode significar).

Veto da Rússia
Neste sábado, em Potocari, fazem-se homenagens (participam representantes de várias partes do conflito), enterram-se mortos, expõem-se feridas que ainda estão muito abertas. E no aniversário do massacre de Srebrenica os lados, os que estão dentro mas também os que estão fora da Bósnia, revelam que há temas em que ainda são tão incompatíveis hoje como eram há 20 anos.

Em Nova Iorque, no Conselho de Segurança das Nações Unidas, a Rússia vetou a apresentação de uma resolução, apresentada pelos britânicos, sobre Srebrenica porque referia o “genocídio”, um crime que o Governo de Moscovo não reconhece ter sido cometido na Bósnia e que não quer oficializar através de um documento do Conselho de Segurança. Os russos disseram que iriam apresentar a sua própria resolução.

Há dias, o líder sérvio da Bósnia, Milorad Dodik, aproveitou uma cerimónia de homenagem às vítimas sérvias para voltar a falar na “maior fraude do século XX”. “Eles dizem-nos: ‘Não devem negar’. Como não negar uma mentira? São vocês que não dizem a verdade. Onde estão esses 8300 homens? Porque mentem?”, disse Dodik.

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