O dia em que a política chegou a Paraty

Alexandra Lucas Coelho e Beatriz Sarlo protagonizaram um dos debates mais políticos desta FLIP. Partindo das suas viagens agarraram a plateia com uma reflexão sobre o Brasil de hoje.

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Beatriz Sarlo e Alexandra Lucas Coelho ©walter craveiro
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Beatriz Sarlo lendo um excerto de um dos seus livros ©walter craveiro
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Alexandra Lucas Coelho lendo o seu livro Vai, Brasil ©walter craveiro
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Beatriz Sarlo ©walter craveiro
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Alexandra Lucas Coelho ©walter craveiro

A política está a passar por aqui. Era inevitável, tinha de acontecer. Na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) na mesa, Turistas aprendizes - uma alusão ao livro O turista aprendiz, do homenageado Mário de Andrade, com viagens de 1920 - que reuniu duas escritoras repórteres, a portuguesa Alexandra Lucas Coelho e a argentina Beatriz Sarlo, começou por se falar de literatura de viagens e acabou-se a falar de política, corrupção e crise.

Por lá passou o Brasil actual, visto pelo olhar destas duas mulheres, estrangeiras que o conhecem bem. E foi assim que conquistaram a plateia.

“A esquerda latino-americana é um tema que atravessou a minha vida, se é que se pode dizer que uma vida é atravessada por alguma coisa”, disse Beatriz Sarlo, que desde muito nova esteve ligada à política e escreve na imprensa sobre o tema. A argentina que não tem dúvidas de que na época em que Lula da Silva surgiu, parecia cumprir o sonho da esquerda latino-americana. Tal como o Partido dos Trabalhadores (PT) brasileiro parecia a realização de um sonho. Disse que, na altura, em Buenos Aires comparavam Lula a François Mitterrand, do partido socialista francês, que também perdeu duas eleições e ganhou à terceira.

 “Lula tinha agregado a isto uma dimensão à qual os latinos americanos são muito sensíveis: tem um carisma pessoal que é imediato e isso não se pode construir. Pode-se construir um político, um sacerdote, um intelectual, mas um político com carisma não se constrói, isso é de ordem física, vem da voz, do corpo e não se transmite. É esse o grande problema dos líderes carismáticos. Não têm sucessão directa, podem transmitir um partido e uma equipa mas não podem transmitir o seu carisma.” Lembrou que isso aconteceu com Perón na Argentina e com Lula no Brasil e com Hugo Chávez na Venezuela. “Chávez tinha um carisma ensurdecedor. Cobri a visita dele a Buenos Aires num campo de futebol e ele provocava o efeito de banda de rock. Exactamente o mesmo. As pessoas fumavam maconha [canábis] e bebiam vinho e o clima era pesado, tentaram roubar a máquina do meu fotógrafo. Chávez entrou e todo o mundo se converteu como se fossem crianças da Acção Católica”, contou a autora de Viagens: da Amazônia às Malvinas provocando gargalhadas na sala. Nesse dia, o político falou três horas e abriu um livro naquele campo de futebol e leu uma carta inteira de Simón Rodríguez a Simón Bolívar. “Nunca mais na minha vida vou ver uma coisa assim. Quando terminou a leitura as pessoas voltaram para a maconha e para o vinho. Tudo perfeito. Isso não se transmite. Ainda que Nicolás Maduro fosse um político inteligente - e penso que não o é - não podia receber isso”, acrescentou. 

Corrupção e polícia militar
Nos políticos quer se goste, quer não se goste da sua ideologia, essa é uma dimensão que pesa. Tirando alguns países como o Chile, “que parece que não precisar de carismáticos”, disse Beatriz Sarlo entre risos, todos os países da América do Sul funcionam com uma mistura entre democracia política, autoritarismo político e carisma. “Por isso, dói-me particularmente o que se está a descobrir de corrupção no Brasil. Todos sabíamos que o regime político brasileiro era um regime cuja mecânica levava à corrupção, por causa do sistema de partidos estaduais com quem se tem de se fazer alianças para formar qualquer governo.” Mas, antes de terminar, Beatriz Sarlo quis marcar uma diferença entre o Brasil e o seu país, a Argentina. “Aqui prenderam José Dirceu, o braço direito de Lula, no meu país não prenderam ninguém. O vice-presidente da República [Amado Boudou] continua a ser vice presidente da República e está a entrar neste momento na justiça por corrupção e nem sequer é por corrupção para financiar a política, é por corrupção para comprar carros. Aí há uma diferença, aqui as pessoas estão a ser submetidas à justiça e é assim que se pode combater a corrupção. Aqui há uma instituição que parece estar a funcionar e isso dá-nos esperança.”

Depois desta longa análise do sistema político da sua companheira de palco, muito aplaudida, Alexandra Lucas Coelho, que já tinha estado na FLIP no papel de moderadora de debates e que este ano regressa como autora, lembrou que para se perceber o Brasil de hoje é preciso olhar para acontecimentos como por exemplo o da desocupação da Aldeia Maracanã, em Março de 2013, em que a polícia lançou gás lacrimogéneo, spray pimenta e balas de borracha em índios, estudantes, deputados, toda a gente, e ela considera que foi um preâmbulo para as Jornadas de Junho, as manifestações e protestos que aconteceram nesse ano no país. “Se recuarmos até à origem, temos esse momento que é fundador, tal como no México, que é o extermínio de milhões de índios com a colonização portuguesa. Essa é uma violência original e fundadora do que veio a ser o território do Brasil”, disse a escritora, referindo ainda os anos de escravatura que só terminou no Brasil em 1888. Alexandra Lucas Coelho lembra que “tudo isso, que é também o resultado da história do lugar de onde eu venho, Portugal” prolongou-se no tempo. 

Guerra no Rio
“Hoje temos esta herança, de toda esta repressão incrustada na sociedade brasileira. E não estou falando do passado, estou falando do presente. Porque a experiência de morar no Brasil é também essa experiência de nós vermos no presente o que está vivo do passado, o que está vivo destes 500 anos.”

A escritora portuguesa, que está a lançar na FLIP o livro Vai, Brasil (Tinta-da-China) que reúne crónicas que publicou desde que chegou ao Brasil como correspondente do jornal PÚBLICO, em 2010, até 2013, lembrou que um dos resultados dessas Jornadas de Junho foi essa questão de como se acaba com a polícia militar no Brasil. E também mostrou a todos brasileiros a descoberta da política e que elas estão implicadas na História, que é também de cada um. 

Uma das perguntas vindas da plateia era de alguém incrédulo que não a imaginava a cobrir conflitos armados no Médio Oriente. Alexandra soltou uma gargalhada e, do seu vestido preto e sapatos a condizer, respondeu que “não iria certamente assim vestida” para o Iraque e Afeganistão. Lembrou a primeira vez que cobriu a favela Complexo do Alemão, “que estava sendo tomado”, e todo aquele processo das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) que entretanto “está em desmoronamento”. Contou que antes de a favela da Mangueira ser ocupada pela polícia, havia o baile funk das sextas-feiras no Buraco Quente da Mangueira onde ela esteve. “Essas armas que eu vi passar, porque era um baile controlado pelo tráfico, algumas eu só tinha visto em Israel ou em outros lugares do Oriente Médio. O Rio de Janeiro é uma cidade violentíssima. Essa experiência de guerra que não imaginamos que se possa ter quotidianamente, ela existe no Rio de Janeiro”, concluiu a escritora portuguesa. 

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