Devora-me

Apichatpong Veerasethakul e João Pedro Rodrigues investem de forma encantatória sobre o espectador, tomam possa dele, tomam conta dele.

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Uma das coisas vivificantes de Manhã de Santo António – e que restaura a memória do filme, uma curta de João Pedro Rodrigues que é já de 2012 – é o cepticismo, a distância do realizador em relação a um mundo e a uma ideia de juventude em que (já) não se reconhece: parada de vómitos, cuecas, skates e telemóveis – eles regressam a casa após uma noite de orgia e afundam-se no lago do narcisismo.

Mas João Pedro Rodrigues faz mais do que apenas assumir a distância: não se refugiando no moralismo reprovador do olhar da estátua de Santo António que vela sobre Alvalade, em Lisboa, expõe o bairro à vandalização dos zombies. Expõe-se ao ataque. “Devorem-me” – é como se dissesse.

A coreografia e o burlesco continuam no sítio. Mas passados três anos sobrevivem mais claramente ao desenho e planificação geométrica. Tal como o bairro de Alvalade, que é o bairro do realizador, continua por conquistar (após Parabéns, de 1997; após O Fantasma, de 2000), também Manhã de Santo António não fica aprisionado pela coreografia. Dispara sentidos vários, o que torna as imagens indecifráveis, essa é a sua violência – e é o que “ocupa” o espectador.

É essa a experiência da sessão dupla que junta a curta do português a uma média-metragem que o tailandês Apichatpong Weerasethakul realizou em 2012, depois da Palma de Ouro de Cannes a O Tio Boonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores (2010). Há aqui, à evidência, uma continuidade sensorial no espectáculo: situando-se, como sempre em Weerasethakul, num território difuso em que a realidade também é o espaço construído pelo sonho e pela memória pessoal e política, Mekong Hotel é um filme em que os fantasmas são (e aqui explicitamente) devoradores. Apichatpong (como à sua maneira Rodigues) investe de forma encantatória sobre o espectador, toma possa dele, toma conta dele - as coreografias de jet ski num rio ensopam-nos e ficam connosco muito depois do final da projecção, a música de uma guitarra não nos larga...No próximo
Cemetery of Splendour, Apichatpong Weerasethakul prossegue de forma ainda mais explícita a sua versão de cinema como hipnotismo na sala.

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