Referendo ao casamento gay mostra mudança "irrevogável" na sociedade irlandesa

O país que já foi o grande feudo católico da Europa é o primeiro do mundo a referendar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Sinal de uma profunda mudança social e do fosso cada vez maior entre o pensamento da Igreja e o dos cidadãos.

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Partidos políticos, media, Igreja Irlandesa e sindicatos apoiam o "sim" Cathal McNaughton/reuters
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Partidos políticos, media, Igreja Irlandesa e sindicatos apoiam o "sim" Cathal McNaughton /Reuters
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A campanha do "não" enfureceu pais solteiros, casais não casados e pessoas que adoptaram Paul Faith/AFP

A jornalista Ursula Halligan viveu, nos últimos meses, os momentos "mais negros e mais brilhantes" da sua vida. A editora de política do canal de televisão irlandês TV3 decidiu, aos 52 anos, assumir publicamente a sua homossexualidade. "Na privacidade do meu pensamento já me tinha resignado a levar este segredo para o túmulo. E era o que teria feito se este referendo não tivesse aparecido."

A Irlanda, que já foi o país mais conservador da Europa, aquele onde as regras da Igreja Católica foram tornadas leis da Constituição, realiza nesta sexta-feira um referendo ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. É o primeiro país do mundo onde serão os cidadãos a decidir e, segundo as sondagens, há probabilidades de o "sim" vencer. Os resultados são divulgados no sábado de manhã.

A iniciativa do Governo chefiado por Enda Kenny (do Fine Gael, que governa em coligação com os liberais), apoiada por todos os partidos políticos com representação parlamentar, pelos media, pela Igreja Irlandesa (um ramo da Anglicana) e pelos sindicatos, obrigou Halligan a confrontar a decisão, tomada quando ainda era adolescente, de guardar segredo sobre a homossexualidade. No artigo do seu "coming out" que escreveu no jornal Irish Times, voltou à escola secundária, quando se apaixonou por uma rapariga, e voltou ainda mais atrás, à educação católica, que a fez pensar que, por causa da sua sexualidade, era uma pessoa "má e perversa".

"Por causa da educação que tive, estava revoltada comigo mesma por me ter apaixonado por uma pessoa do meu sexo", escreveu, explicando que tentou forçar sentimentos homófobos — era o que a educação religiosa lhe dizia para fazer — para acabar com aquela paixão; houve momentos, quando era adolescente, em que pensou que a morte era uma boa fuga. "Para mim, não houve primeiro beijo, não houve festa de noivado, não houve casamento. Até há pouco tempo não havia sequer esperança de um dia ter direito a isto tudo", escreveu.

A jornalista cresceu nos anos 1970, uma década que juntamente com a de 60 foi de grande repressão aos homossexuais na Irlanda. A autoridade moral da Igreja Católica, que moldou o país durante os primeiros 60 anos após a independência (nos anos 20 do século XX), era inquestionável e ser gay era um crime punido por lei.

"Tenho 70 anos e comecei a minha vida como um criminoso", explicou ao Financial Times o deputado David Norris, que assumiu a sua homossexualidade quando o amor entre pessoas do mesmo sexo era proibido. Norris ainda está espantado com o que está a acontecer: "Fazer, durante uma vida, esta viagem que é passar de criminoso a pessoa que tem o direito de se casar é espantoso", disse.

Para o historiador Gráinne Healy, da Universidade de Dublin, o referendo desta sexta-feira não é apenas um sinal da mudança social que ocorreu na Irlanda nas últimas décadas, é também o culminar do percurso que a Irlanda fez para se tornar uma "democracia europeia normal", como disse ao Financial Times. "A Irlanda está a caminhar para um novo espaço e o referendo é também um teste a esta mudança", disse o historiador.

Sociedade mais liberal
No topo das explicações para o processo de modernização da Irlanda está o declínio da Igreja Católica — cujos dogmas foram ficando cada vez mais distantes do pensamento e da vida dos cidadãos —, até ao ponto da autodestruição dos últimos anos com o escândalo dos crimes de pedofilia cometidos por padres e freiras. Segue-se a autonomia que a política foi conquistando, processo que andou a par da crescente pressão por parte dos movimentos de mulheres (a chegada de Mary Robinson à presidência, entre 1990 e 97, ajudou), que se traduziu em leis mais liberais e adequadas às necessidades dos cidadãos — foram aprovadas leis sobre a contracepção, o divórcio foi legalizado (foram precisos dois referendos, um em 1986 e outro em 1995), a homossexualidade foi discriminalizada em 1993 e, por fim, em 2010, a união de facto para casais do mesmo sexo foi aprovada. A prosperidade irlandesa, nos anos de 1990, ajudou a criar uma sociedade mais liberal, explicam os historiadores. A excepção é o aborto que, cinco referendos depois, continua a ser ilegal.

A campanha do "não" foi orientada por grupos conservadores, por think tanks ligados à Igreja Católica e pela própria Igreja que é contra a "redefenição" do casamento — se o "sim" passar, o casamento passará a ser definido na Constituição como a união legal entre duas pessoas, sem referência ao sexo. Estes grupos insistiram na ideia de que "as crianças merecem um pai e uma mãe".

Alguns analistas consideraram esta linha de argumento (ligada à reprodução) um tremendo erro por parte da campanha do "não", por ofender vários grupos de eleitores — as mães e os pais solteiros, os casais que optaram por não se casar, as pessoas que decidiram adoptar. "Na sua tentativa de procurarem um princípio que negue a igualdade aos gays e às lésbicas, acabaram por dizer a muitos grupos de pessoas que as suas relações não valem nada", escreveu o conceituado colunista irlandês Fintan O’Toole no Irish Times, num artigo em que começa com a revelação de que fez uma vasectomia há 25 anos, pelo que, segundo a Igreja Católica, o seu casamento não vale grande coisa porque ele e a sua mulher não são "uma família".

O debate que antecedeu o referendo — assim como as sondagens, o "sim" está à frente mas por curta margem — mostrou que os cidadãos estão divididos sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas expôs a distância entre o pensamento católico e os irlandeses. "Seja qual for o resultado — escreveu no Guardian a autora irlandesa homossexual Una Mullally —, o referendo já mostrou que há uma mudança real e irrevogável na sociedade irlandesa."

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