Todd Haynes demasiado perto do paraíso
Carol é uma história de amor entre duas mulheres com final feliz garantido. Pelo meio, convocam-se os cúmplices do costume e o realizador americano transforma-se num tradutor meticuloso.
Um filme de Todd Haynes? Melhor seria dizer: um filme do director de fotografia Ed Lachman? Ou Carol deverá ser mais fielmente descrito como um “labor of love” da argumentista Phyllis Nagy, autora da adaptação de The Price of Salt, o romance lésbico que Patricia Highsmith escreveu em 1952 sob o pseudónimo de Claire Morgan?
Não é desprimor algum para Haynes. O seu papel em Carol, o regresso do cineasta norte-americano à competição de Cannes depois de Velvet Goldmine (1998), aparenta ser o de um meticuloso tradutor: alguém que se disponibilizou para a respiração da intimidade e para os silêncios de uma história, de um argumento, que era projecto antigo de Phyllis Nagy a que estava associada a actriz Cate Blanchett. Estava em vias de se gorar por indisponibilidade do realizador inicialmente escolhido, até que houve uma fértil conversa telefónica com Christine Vachon, produtora e cúmplice de sempre de Haynes, que faz seu o projecto com outra distintiva intervenção, a de Ed Lachman (Longe do Paraíso, I’m not There, Mildred Pierce), prodigioso a reconstituir uma Nova Iorque velada pelo moralismo e encoberta pelas convenções que a protegiam naqueles anos 50.
É este o quadro da história de amor entre as personagens de Blanchett e Rooney Mara (allure de Audrey Hepburn), história e silêncios entre as palavras e ar que (mal) se respira, história de aproximações e distâncias que as duas personagens tomam, pesos e domínios que se transferem e que fazem a performance das emoções – até chegar ao happy end, porque sobre esta história de Highsmith diz-se sempre que é uma das raras histórias de amor entre lésbicas com final feliz.
Pode-se olhar para o cinema de Haynes de várias maneiras, uma delas permite encontrar nele uma história da vida privada na América dos anos 50, um arquivo de gestos, comportamentos – e guarda roupa. Carol é, em tudo, um filme de Todd Haynes, se bem que a componente sirkiana que por automatismo se passou a associar à sua obra, uma realidade intensificada pela histeria emocional, já tinha sido domada, e o realismo tintado com outras cores, na mini-série Mildred Pierce (2011). Lachman confirmou aqui que foi essa a referência para Carol. E de alguma forma, o modelo de série televisiva, naquilo que ele pode ter de redondo, confinado aos seus limites, parece ter-se prolongado para Carol – mas é coisa de luxo, para admirar, mesmo que nela Todd Haynes esteja demasiado perto de um certo paraíso do gosto, da convenção, da carpintaria de argumento e da construção de personagens.
Química de actores
No oposto da claustrofonia milimetricamente controlada que faz o cinema de Todd Haynes, está Mon Roi, de Maïwenn (Prémio do Júri em Cannes 2011, por Polisse). O “rei” do título é a personagem de Vincent Cassel. Quem está subjugada por ele é a personagem de Emmanuelle Bercot (actriz que é também a realizadora de La Tête Haute, o filme que fez a abertura, e igualmente em competição, desta 68.ª e dição).
O filme passa-se num arco temporal de dez anos, o de uma relação conjugal e suas turbulências, e é construído através de flashbacks: a personagem de Bercot está num centro de terapia a recuperar de um acidente de ski e passa em revista a violência da sua relação com a personagem de Cassel - o que não é propriamente um prodígio de subtileza, esta associação do corpo e do emocional, e arquiva Mon Roi na gaveta de filme de reabilitação sentimental (um dos dados de Polisse, aliás), e com final de superação feminina no horizonte a comprovar-se. Que felicidade!
Há química entre Cassel e Bercot: o perigo dele, a reserva e a desconfiança dela, ele volátil e imprevisível a inundar tudo, ela com os pés na terra a fazer barragem ao tsunami. É uma bela reação química que se observa, mas desenrola-se sozinha. O que Maïwenn consegue fazer? Nem sequer um catalisador, porque a presença do realizador vai-se progressivamente diluindo até desaparecer, continuando a desenrolar-se sozinho algo que faz figura de um filme.